Livros - [ TÓPICO DEDICADO ]

É, as últimas páginas dos livros dá vontade de não querer parar de ler. Parece que tem um termo pra isso: "Sanderlanche", quando ele começa e despejar informações e tu fica grudado no livro.

Porq continuar na luta? O terceiro tá deixando a desejar?
Tá não. Tô gostando. Muito cedo pra dar um veredito, de qualquer forma.

A luta é mais pelo calhamaço de páginas mesmo.
 
Esqueci de postar:




E comecei:
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Gostando.
 
Terminei hoje a leitura do "1984" do George Orwell e estou assustado o quanto esse livro é tão atual, agora para relaxar vou iniciar a leitura do "Chaves: A história oficial ilustrada".
 
Estou lendo a Torre negra, estou no quinto livro, voltei a ler no quarto depois de 10 anos, cara que história boa de consumir.

Ansioso pelas aventuras da torre :much:
 
Estou terminando de ler "Bitcoin, a moeda da era digital"; quero ler um livro de desenvolvimento pessoal, pensei em comprar algum do jordan peterson. Nao conheço nada sobre ele, mas ja vi uns cortes e achei ele muito coerente
 
Acabei de ler "M, o filho do século" do Antonio Scurati. Livro excepcional. É o primeiro da trilogia (o segundo também já saiu).

É um romance histórico que conta a ascensão do Mussolini na Itália pós-primeira guerra. Não é uma biografia no sentido clássico, o livro já começa em 1919. Seria mais uma biografia política da ascensão do fascismo italiano em forma de romance. Com grandes doses de sarcasmo, ironia e cinismo. Vale muito a pena a leitura. Ao longo dos mais ou menos 6 anos que esse volume aborda (vai de 1919 a mais ou menos 1925), o autor constrói de forma muito vivida o cenário em que se encontra a Itália naquele momento e seus desdobramentos.

Para algumas pessoas, pode parecer um livro um pouco lento em alguns momentos. Porque é uma leitura de fôlego, afinal são 811 páginas, das quais 797 são o conteúdo do livro em si, o resto são informações sobre as principais figuras que aparecem no livro. É aquele livro para ser lido com calma, aos poucos, dá pra ler junto com outro livro tranquilamente. Assim que descansar um pouco de leituras muito longas como essa, vou comprar o segundo volume ("M, o homem de providência").

Nesse meio tempo também li algumas histórias da coletânea "Tiros na Noite" do vol. 1 do Dashiell Hammett. São histórias curtas, no mais clássico do estilo Noir. Algumas são melhores do que outras, como em qualquer coletânea. De qualquer forma, vale a leitura. É um bom passa tempo.

Vou descansar um pouco, depois de ler essa calhamaço do Scurati. Estou na dúvida se releio dos livros do Tolkien (por causa da série) ou se pego algum dos livros que tenho na fila aqui para ler, que são: Samurai do Shusaku Endo; Lima Barreto vs Coelho Neto do Mauro Rosso; Uma breve história do tempo do Stephen Hawking e o Hiperculturalidade do Byung-Chul Han.
 
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Vai de 12 regras do Peterson.

Acho que é o livro que eu mais reli recentemente.
 
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Nesse brilhante livro, Domenico Losurdo fez um exímio trabalho de pesquisa histórica e análise da tradição liberal e o conteúdo foi extremamente importante para desmistificar toda mitologia, dogmas, mantras e falácias liberais (além do racismo, colonialismo, escravidão e o apoio dos liberais aos regimes nazifascistas e autoritários do século XX), leitura essencial para os indivíduos críticos do liberalismo econômico. :vinho:
 
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Em “O lucro ou as pessoas?”, Noam Chomsky nos revela as razões pelas quais o neoliberalismo é sistema doutrinário e panfletário, visando o aumento maciço da concentração de riqueza nas “mãos invisíveis” do mercado (ou melhor, de grupos privados), desigualdades socioeconômicas e o sucateamento/destruição de políticas públicas e dos direitos civis da maioria das pessoas. Nos anos 1990, a “nova ordem” neoliberal gerou imensas crises no sudoeste da Ásia, no Leste da Europa e na América Latina, e até mesmo afetou a qualidade de vida da classe média dos E.U.A., do Japão e dos países europeus industrializados e socialmente desenvolvidos. Outra leitura obrigatória para pessoas com o pensamento e atitude críticos. :vinho:
 
Recentemente terminei "O Livro do Desassossego" do Fernando Pessoa. Eu não faço ideia do que falar sobre o livro, parece que nada que eu jamais possa escrever fará jus a amplitude de tudo apresentado. Algumas de inúmeras passagens fantásticas:

"Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido."

"O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e é humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter"
 


E comecei:
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Gosto muito do 12 Regras Para a Vida do Jordan Peterson que o colega recomendou. Foi um livro que mudou minha vida, mas muito provavelmente pelo momento em que li. Gosto do "segundo", Além da Ordem - Mais 12 Regras para a Vida. A escrita do Peterson é bem extensa e profunda, mas bastante inspiradora.

A Vida Intelectual do A.D. Sertillanges também é interessante, apesar do cunho religioso. Postei review aqui no tópico já.

Meditações do Marco Aurélio também cai bem.

E gosto bastante do A Conquista da Felicidade, do Bertrand Russell.
 
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Arthur Schopenhauer edificou uma visão de mundo que moldou o pensamento moderno, sendo fundamental para a constituição dos sistemas filosóficos e científicos de autores como Nietzsche, Freud, Wittgenstein e Popper, sem falar de seu impacto na obra de escritores como Tolstoi, Jorge Luis Borges, Thomas Mann, Machado de Assis e Augusto dos Anjos. Também foi o primeiro filósofo ocidental a realizar a intersecção de toda a filosofia de inspiração platônica-kantiana com a filosofia oriental.

Dividido em quatro partes, O mundo como vontade e como representação parte da divisão kantiana do universo em fenômeno e noumenon (a coisa-em-si) para promover o cruzamento da realidade empírica com a consciência humana. Em um todo coerente que maneja habilmente Metafísica, a Ética e a Estética, o pensamento schopenhaueriano nos fornece a ideia do mundo como a representação que faço dele e no qual a Vontade − e não a razão − é a força maior que comanda as ações humanas.

No Livro I, Schopenhauer investiga os fenômenos da realidade no tempo e no espaço e na causalidade. Ou seja, aborda como as intuições empíricas atuam na formação do nosso conhecimento do mundo e enfrenta a terrível questão da condição humana que é a sua mortalidade. O Livro II trata da “objetividade da Vontade”, investigando o noumenon, que Kant acreditava estar fora do alcance de nossa cognição. A Metafísica do Belo, no Livro III, eleva a contemplação estética a um estado de forma de conhecimento do mundo, sendo a transcendência pela arte a forma mais efetiva para a suspensão da dor que é inerente à conduta humana. Já o Livro IV retoma o conceito de Vontade para sistematizar uma “metafísica da ética”. Na “Crítica da filosofia kantiana”, Schopenhauer assinala os pontos de discordância com o sistema filosófico que permitiu o melhor de seu “próprio desenvolvimento”.
 
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Eis um livro que influenciou todos os grandes pensadores, no mundo inteiro: os Ensaios, de Michel de Montaigne (1533-1592), que reúne textos independentes sobre temas diversos, desde a natureza do ato de refletir à tristeza. Uma das mentes mais originais de que já se teve notícia, Montaigne foi um humanista radical, um precursor do Iluminismo. Sem ser acadêmico, militar, professor ou religioso, colocou a própria consciência no centro de qualquer reflexão que poderia fazer. E o fez com extrema graça, estilo e espírito, legando à posteridade três grandes volumes de sua autoria. Aqui o leitor encontra os primeiros 25 textos dos Ensaios, que compõem a primeira metade do Livro I da obra do autor. Dentre eles destacam-se “Que filosofar é aprender a morrer”, uma reflexão sobre a vida e a morte, e “Da educação das crianças”, um libelo por uma educação humanista e pelo livre-pensamento.

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“Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso, talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque, de toda sabedoria e inteligência, resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de morrer. Em verdade, ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação, e seu trabalho tender para que vivamos bem, e com alegria, como recomenda a Sagrada Escritura [Eclesiastes 3,12: “Então compreendi que não existe para o homem nada melhor do que se alegrar e agir bem durante a vida”]. Todas as opiniões propõem que o prazer é a meta da vida, mas diferem no que concerne aos meios de atingir o alvo. E, se assim não fosse, as repeliríamos de imediato, pois quem daria ouvido a alguém que apontasse a pena e o sofrimento como os objetivos da existência? A esse respeito, as dissensões entre seitas filosóficas são puro palavrório: “deixemos de lado essas sutilezas” (Sêneca); em tais discussões entra mais obstinação e picuinha do que convém à ciência tão respeitável. Mas em qualquer papel que se proponha desempenhar põe o homem um pouco de si mesmo.

Digam o que disserem, na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia. E agrada-me repetir essa palavra que pronunciam constrangidos. E, se significa prazer supremo e extremada satisfação, melhor se deva ela à virtude do que a qualquer outra causa, pois volúpia, robusta e viril, é a mais seriamente voluptuosa. E deveríamos chamá-la prazer, denominação mais feliz e mais natural, do que a de vigor que lhe damos. Quanto à volúpia de ordem menos elevada, se acreditam que mereça igual nome, que o mantenham, mas não com exclusividade. Mais do que a virtude, tem ela seus inconvenientes e seus momentos difíceis; além de serem mais efêmeras as sensações que nos procura, e mais fluidas e fugidias, tem suas vigílias, seus jejuns, suas penas, seu suor e sangue. Paixões de toda sorte influem nela, e redunda ela em tão pesada saciedade, que equivale a uma penitência. É erro nosso imaginar que tais inconvenientes a estimulam, e a condimentam, em razão dessa lei da natureza que afirma tudo se fortalecer ante o obstáculo encontrado; e erro é também pensar que, quando se trata de volúpia proveniente da virtude, semelhantes dificuldades a acabrunham e a tornam austera e inacessível.

Ao contrário do que se verifica com a volúpia, na prática da virtude tais dificuldades enobrecem, requintam e realçam o prazer divino e perfeito que ela nos procura. Bem indigno de senti-lo é, por certo, quem pesa o custo e o rendimento dela; não lhe conhece as belezas nem o uso. Os que nos afirmam que, embora sua posse seja agradável, penosa e laboriosa é a sua conquista, não nos estarão dizendo ser a virtude coisa sempre desagradável? Mesmo porque, quem a terá jamais atingido? Os mais perfeitos tiveram de se contentar com aspirar a ela, dela se aproximar sem nunca chegar a possuí-la. Enganam-se, porém, os que assim falam, pois não há prazer conhecido cuja procura em si já não constitua uma satisfação. Ela se liga ao objetivo visado e contribui muito para o resultado de que participa essencialmente. A felicidade e a bem-aventurança da virtude enchem-lhes as dependências e os caminhos, desde o portão de entrada até os muros que lhe cercam os domínios.

Um dos principais benefícios da virtude está no desprezo que nos inspira pela morte, o que nos permite viver em doce quietude e faz que se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa existência. E, sem esses sentimentos, toda volúpia é sem encanto. Eis porque todos os sistemas filosóficos concordam nesse ponto e para ele convergem. Embora todos se entendam igualmente em nos recomendar o desprezo à dor, à pobreza e outros acidentes a que está sujeita a vida humana, nem todos o fazem com igual cuidado, ou porque tais acidentes não nos atingem forçosamente (em sua maioria, os homens vivem sua vida sem sofrer com a pobreza, e alguns, como o músico Xenófilo [1] que morreu com cento e seis anos, vivem em perfeita saúde, sem conhecer nem a dor nem a doença), ou porque, na pior das hipóteses, pode a morte, quando menos esperamos, pôr fim aos nossos males. E ela própria é inevitável: “Marchamos todos para a morte; nosso destino agita-se na urna funerária; um pouco mais cedo, um pouco mais tarde, o nome de cada um dali sairá e a barca fatal nos levará a todos ao eterno exílio” (Horácio). Portanto, se a receamos, temos nela um motivo permanente de tormentos e andaremos como em país inimigo, a deitar os olhos para todos os lados: “ela é sempre uma ameaça, como o rochedo de Tântalo” (Cícero).

Nossos tribunais ordenam, muitas vezes, que se execute o criminoso no próprio local do crime. “Conduzam-no durante o trajeto, entre belas residências, e deem-lhe as melhores refeições; as mais deliciosas iguarias não poderão acariciar-lhe o paladar, nem o canto dos pássaros, nem os acordes da lira lhe devolverão o sono” (Horácio). Pensais que será sensível a nossos cuidados e que o fim último de sua viagem, sempre em mente, não lhe alterará e tornará insosso qualquer possível prazer? “Inquieta-se com o caminho, conta os dias, mede a vida pela extensão da estrada, sem cessar atormentado pela ideia do suplício que o espera” (Cláudio).

A meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte. Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira? “Por que não coloca o freio no rabo do asno, já que meteu na cabeça andar de costas?” (Lucrécio). Não há como estranhar que caia tantas vezes na armadilha. As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se como se ouvissem falar no diabo. E, como ela é mencionada nos testamentos, só resolvem fazer o seu quando o médico os condenou. E Deus sabe em que estado de espírito se encontram então, sob o impacto da dor e do pavor.

Como esta palavra ressoava demasiado forte a seus ouvidos, e lhes parecia de mau augúrio, tinham os romanos se habituado a adoçá-la ou a empregar perífrases. Em vez de dizer: “morreu”, diziam: “parou de viver, viveu”; bastava-lhes que se falasse em vida. Nós lhes tomamos de empréstimo esses eufemismos e dizemos: “Mestre João se foi”. [2] Se, porventura, se aplica o ditado “a palavra é de prata”, como nasci no último dia de fevereiro de 1533, faz exatamente quinze dias que completei meus trinta e nove anos. Posso, pois, esperar viver ainda tal período; e atormentar-me meditando sobre tão longínqua eventualidade, seria loucura. Mas jovens e velhos se vão da vida em condições idênticas. Partem todos como se acabassem de chegar, sem contar que não há homem tão decrépito ou velho ou alquebrado que não alimente a esperança da longevidade de Matusalém, e não tenha ainda vinte anos de vida diante de si. Direi mais: quem, pobre louco, fixou a duração de tua existência? Acreditas no que dizem os médicos, sem atentar para o que se verifica em torno de ti, e sem julgar pela experiência. Pelo andar das coisas, há muito já não vives, senão por excepcional favor. Já ultrapassaste a duração habitual da vida. Podes comprová-lo contando quantos entre os teus conhecidos morreram antes dessa idade, em bem maior número do que os que a alcançaram. Anota os nomes dos que, pelo brilho de sua existência, adquiriram certa fama; aposto encontrar, entre eles, mortos antes dos trinta e cinco, muito mais do que depois.

O razoável e o piedoso está em tomar como exemplo a humanidade de Jesus: ora, sua existência terrena findou-se aos trinta e três anos. O maior imperador do mundo, Alexandre, morreu também com essa idade.

Quantas maneiras diversas tem a morte de nos surpreender? “O homem nunca pode chegar a prever todos os perigos que o ameaçam a cada instante” (Horácio). Deixo de lado as doenças, as febres, as pleurisias. Quem poderia imaginar que um duque da Bretanha fosse morrer sufocado pela multidão, como aconteceu a um deles, quando da entrada em Lyon do Papa Clemente, meu compatriota? Não vimos um dos nossos reis morrer num folguedo? E não faleceu outro, seu antepassado, da queda de um porco que montava? Ésquilo, advertido de que morreria da queda de uma casa, embora dormisse num campo de trigo, foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de uma águia. Houve quem sucumbisse em consequência de uma semente de uva engolida; outro, imperador, morreu de um arranhão feito com o pente; Emílio Lépido em virtude de uma topada na porta de sua casa; Aufídio por ter batido com a cabeça no batente da entrada da sala do Conselho. E entre as coxas das mulheres: o pretor Cornélio Galo, Tigelino, comandante da guarda de Roma, Ludovico, filho de Guy de Gonzaga, Marquês de Mântua, e, o que é péssimo exemplo, Espêusipo, filósofo platônico. E até um papa de nosso tempo.

O pobre Bebius, que era juiz, ao adiar o julgamento de certa causa, morreu subitamente; chegara a sua hora. O médico Caio Júlio, ao tratar dos olhos de um enfermo, teve os seus próprios fechados para sempre. E, para misturar-me à enumeração: um dos meus irmãos, Capitão Saint Martin, de vinte e quatro anos e que já dera provas sobejas de seu valor, foi atingido por uma bola logo abaixo da orelha direita quando jogava queimada. Nem vestígio nem contusão, não se sentou sequer, não interrompeu o jogo, e, no entanto, cinco ou seis horas depois, ei-lo atacado de apoplexia causada pelo golpe recebido.

Tais exemplos são tão frequentes, repetem-se tão comumente diante de nossos olhos, que não parece possível evitar que nosso pensamento se oriente para a morte, nem negar que a cada instante ela nos ameace. Que importa o que possa acontecer, direis, se não nos preocupamos com isso? É também meu parecer, e se houvesse meio de escapar ao golpe, ainda que fosse sob uma pele de vitela, não seria homem se não o empregasse, pois a mim me basta viver sossegado e pondo em prática tudo o que para isto venha contribuir, embora pouco glorioso ou exemplar: “prefiro passar por louco ou impertinente, se meu erro me agrada ou não o percebo, a ser sábio e sofrer” (Horácio). É loucura, porém, querer se furtar assim a essa ideia. Vai-se, volta-se, corre-se, dança-se: nenhuma notícia da morte, que beleza! Mas, quando ela nos cai em cima, ou em cima de nossas mulheres, nossos filhos, nossos amigos, que os surpreenda ou não, quantos tormentos, gritos, imprecações, desespero! Vistes alguém mais humilhado, transtornado, confundido? É preciso preocupar-se com ela de antemão. Pois esse descuido animal, ainda que pudesse se alojar na mente de um homem inteligente, o que acho inteiramente impossível, nos faz pagar caro demais sua mercadoria. [3] Se a morte fosse um inimigo suscetível de se evitar, aconselharia agir diante dela como um covarde diante do perigo; mas, em não sendo isso verdade, e atingindo ela infalivelmente os fugitivos, covardes ou valentes, “persegue o homem em sua fuga e não poupa nem mesmo a tímida juventude que tenta escapar-lhe” (Horácio); como nenhuma couraça nos protege contra ela, “cobri-vos de ferro e bronze, a morte vos atingirá sob a armadura” (idem), aprendamos a esperá-la de pé firme e a lutar. Para começar a despojá-la da vantagem maior de que dispõe contra nós, tomemos o caminho inverso ao habitual. Tiremos dela o que tem de estranho; habituemo-nos a ela, não pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as formas. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, digamos: “se fosse a morte!”, e esforcemo-nos em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar. Em meio às festas e aos divertimentos, lembremo-nos sem cessar de que somos mortais, e não nos entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre tempo para recordar que de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte, nem em quantas circunstâncias ela sobrevém inopinadamente. É o que faziam os egípcios quando, em seus festivais e voltados aos prazeres da mesa, mandavam trazer um esqueleto humano para rememorar aos convivas a fragilidade de sua vida: “Pensa que cada dia é teu último dia, e aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas” (idem).

Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento. Paulo Emílio, ao ir receber as honras do triunfo, respondia ao mensageiro enviado por esse infeliz rei da Macedônia, seu prisioneiro, a fim de suplicar-lhe que não o incluísse em seu séquito: “Que o solicite a si próprio”.

Em verdade, sem certo assentimento da natureza é difícil que a arte e a indústria progridam nas obras que produzem. Eu não sou melancólico, sou sonhador. Não há nada que minha imaginação vasculhe mais do que a ideia da morte, e isso desde sempre, mesmo no período de minha vida em que mais me dediquei aos prazeres: “estava então na flor da idade” (Catulo). Entre senhoras e festas, imaginavam que eu andasse preocupado a remoer algum ciúme ou à espera inquieta de qualquer acontecimento, enquanto, na realidade, meu pensamento se orientava para não sei quem que, dias antes, ao sair de festa semelhante, entregue ao ócio, ao amor e às doces recordações, fora tomado de febre e morrera. E considerava que coisa análoga me aguardava de tocaia: “Em breve, o tempo presente já não será e não poderemos lembrá-lo” (Lucrécio). E não me franzia a fronte, mais do que qualquer outro, esse pensamento.

É impossível que, a princípio, essa ideia não nos cause penosa impressão. Mas, voltando a ela, encarando-a de todos os ângulos, aos poucos acabamos por nos acostumarmos a ela. De outro modo, teria eu andado continuamente agitado e amedrontado, pois ninguém mais do que eu jamais desconfiou tanto da vida e contou menos com a sua duração. Minha saúde, até agora excelente, apenas perturbada por pequenas indisposições, não me dá maiores esperanças de grande longevidade, como tampouco doenças me fazem temer um fim prematuro. A cada instante tenho a impressão de haver chegado minha última hora, e repito sem cessar: o que deverá ocorrer fatalmente um dia, pode acontecer hoje. Efetivamente, os acasos e perigos a que estamos expostos pouco ou nada nos aproximam do fim. E, se pensarmos em quantos acidentes podem ameaçar-nos, além dos que imaginamos iminentes, deveremos reconhecer que, no mar como no lar, na guerra como no retiro, a morte sempre se encontra perto de nós: “Nenhum homem é mais frágil do que outro, nenhum tem assegurado o dia seguinte” (Sêneca).

Para fazer o que me cumpre fazer antes de morrer, todo tempo me parece curto, ainda que se trate de trabalho de uma hora. Alguém, folheando meu caderno de notas, revelou algo que eu desejava que se fizesse depois de minha morte; disse a essa pessoa a verdade, isto é, que, ao registrar essa nota, encontrava-me a uma légua apenas de casa, mas me apressara em escrevê-la porque não estava certo de não morrer antes de entrar. A chegada da morte não me surpreenderá; acho-me sempre, e o quanto posso, preparado para essa ocorrência. Ela se mistura sem cessar a meu pensamento, nele se grava. Na medida do possível, andemos sempre de botas e prontos para partir e, em particular, não tenhamos negócios a tratar senão com nós mesmos: “por que, em tão curta vida, fazer tantos projetos?” (Horácio). Suficiente trabalho teremos com esses negócios próprios, para que nos embaracemos com outros. Mais do que da morte, queixam-se uns de que venha interromper uma bela vitória; lamentam-se outros de não terem podido casar a filha antes ou educarem as crianças; um lastima deixar a mulher, outro, o filho, entes a que mais se apegavam. Quanto a mim, graças a Deus, estou em estado de desaparecer quando Lhe aprouver, sem nenhuma saudade senão da própria vida. Estou em regra com tudo e como que já disse adeus a todos, salvo a mim mesmo. Nunca homem se apresentou mais bem preparado para deixar a vida no momento necessário e sem a menor dissimulação. Ninguém se desprendeu melhor e mais completamente da vida do que eu. As mortes mais mortais são as mais desejáveis. [4] “Oh desgraça — dizem uns —, um só dia nefasto basta para envenenar todas as alegrias da vida” (Lucrécio). “Não terminarei nunca a minha obra — lamenta o arquiteto —, deixarei, pois, imperfeitos esses soberbos baluartes” (Virgílio). Nada se empreenda, pois, em vista de tão remota conclusão, pelo menos não o faça com a apaixonada intenção de chegar ao fim. Nascemos para agir: “quero que a morte me surpreenda em pleno trabalho” (Ovídio).

Vamos agir, portanto, e prolonguemos os trabalhos da existência o quanto pudermos, e que a morte nos encontre a plantar as nossas couves, mas indiferentes à sua chegada e mais ainda ante as nossas hortas inacabadas. Conheço alguém que, na hora extrema, lastimava incessantemente lhe fosse cortar, a morte, no décimo quinto ou no décimo sexto de nossos reis, o foi de uma história em andamento. “Não pensem que a morte nos rouba a saudade das coisas mais queridas”.

Devemos nos desfazer dessas preocupações vulgares e nocivas. Se se construíram cemitérios perto das igrejas e nos lugares mais frequentados da cidade, foi, diz Licurgo, para acostumar a plebe, as mulheres e as crianças a não se assustarem à vista de um morto e a fim que o contínuo espetáculo de ossadas, túmulos, pompas funerárias, advirta todos do que os espera: “Era outrora costume alegrar os festins com execuções e com combates de gladiadores; estes caíam muitas vezes entre as taças e inundavam de sangue as mesas do banquete” (Sílio Itálico).

Os egípcios, em seus festins, faziam apresentar aos convivas uma imagem da morte, que lhes gritava: “bebe, goza, pois serás assim depois de morto”. Também se tornou em mim um hábito não somente ter sempre presente a ideia da morte como também falar dela constantemente. E nada me interessa mais do que indagar da morte das pessoas: que disseram, que atitude assumiram? Nas histórias que leio, os trechos referentes à morte são os que mais me prendem a atenção. Vê-se isso pela escolha dos meus exemplos e pela afeição particular que revelo pelo assunto. Se fosse escritor, anotaria as mortes que mais me impressionaram e as comentaria, pois quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver. Dicearco escreveu um livro com esse título, porém, diferente e menos útil em seu objetivo.

Dirão que, em sua realidade, a morte ultrapassa nossa concepção; por mais que nos preparemos para enfrentá-la, quando ela chegar estaremos no mesmo ponto. Deixai-os falar. Sem dúvida, uma tal preparação comporta grandes vantagens, pois será pouco caminhar ao seu encontro sem apreensões? Tem mais: a própria natureza nos ajuda na ocorrência e nos dá a coragem que poderia nos faltar. Se nossa morte é súbita e violenta, não temos tempo de receá-la; se não, na medida em que a enfermidade nos domina, diminui naturalmente nosso apego à vida. Custa-me muito mais aceitar a ideia de morrer quando gozo saúde do que quando estou com febre. Quando não me sinto bem, as alegrias da vida me parecem menos valiosas, tanto mais quanto não estou em condições de usufruí-las, a morte se me afigura menos temível. Disso concluo que, quanto mais me desprender da vida e me aproximar da morte, mais facilmente me conformarei com a passagem de uma para outra. Como diz César, e como verifiquei em mais de uma circunstância, as coisas produzem maiores efeitos de longe que de perto. Assim é que me atormentam mais as doenças se estou bem de saúde do que se as enfrento. A alegria, o prazer e a força me induzem a uma ampliação desproporcional do estado contrário, e os incômodos da enfermidade eu os concebo mais pesados do que os sinto realmente quando adoeço. E espero que o mesmo se dê quanto à morte.

As flutuações a que se sujeita a nossa saúde, o enfraquecimento gradual que sofremos, são meios que a natureza emprega para nos dissimular a aproximação de nosso fim e de nossa decrepitude. Que resta a um ancião do vigor de sua juventude e do seu passado? “Ah, como sobra pouco aos velhos” (Pseudo-Galo). César, a quem um soldado alquebrado e decrépito viera pedir em plena sua autorização para se matar, respondeu rindo: “Pensas então que ainda estás vivo?”

Creio que não seríamos capazes de suportar uma tal mudança se a ela chegássemos repentinamente. Mas, em nos conduzindo pela mão, devagar, quase insensivelmente, a natureza nos familiariza com essa miserável condição. De tal modo que a mocidade se extingue em nós sem que lhe percebamos o fim, em verdade mais penoso do que o de nosso ser inteiro ao ter de deixar uma vida de achaques quando morremos de velhice. O salto que nos cabe dar para passar de uma existência miserável ao fim dela não é tão sensível quanto o que separa uma vida tranquila e florescente de uma vida difícil e dolorosa. O corpo curvado tem menos força para carregar um fardo; o mesmo ocorre com a alma, que é preciso fortalecer e pôr em condição de resistir à opressão causada pelo medo da morte. Como é impossível que encontre a calma sob o peso desse temor, se o pudesse dominar inteiramente — o que está acima das forças humanas — estaria a alma assegurada contra a inquietação, a ansiedade, o medo e tudo o que nos aflige: “nem o rosto cruel de um tirano, nem a tempestade furiosa que revolve o Adriático, nada lhe pode abalar o ânimo; nada, nem Zeus lançando seus raios” (Horácio). A alma se tornaria então senhora de suas paixões e de seus mais ardentes desejos; nada a atingiria, nem a indigência, nem a vergonha, nenhuma adversidade. Esforcemo-nos, pois, por conseguir essa vantagem. Nisso consiste a verdadeira e soberana liberdade, a que nos permite desafiar a violência e a injustiça, desprezar a prisão e os ferros escravizadores: “Vou te sobrecarregar os pés e as mãos de cadeias e te entregarei ao mais cruel dos carcereiros. ― Um Deus me libertará. Esse deus, penso eu, é a morte, a morte, termo de todas as coisas” (idem).

Nossa religião não teve alicerce humano mais sólido que o do desprezo à vida. E não é somente a voz da razão que a isso nos conduz, pois por que temeríamos perder uma coisa que, uma vez perdida, já não podemos lamentar? E, como a morte nos ameaça sem cessar sob vários aspectos, não será mais desagradável ficarmos todos a receá-los de antemão, do que nos resignarmos de uma vez por todas diante dela? Por que se preocupar com sua vinda, se é inevitável? Alguém disse a Sócrates: “os Trinta Tiranos te condenaram à morte”. Ao que o filósofo respondeu: “Eles já foram condenados pela natureza”. Que tolice nos afligirmos no momento em que nos vamos ver livres de nossos males! Nossa vinda ao mundo foi para nós a vinda de todas as coisas; nossa morte será a morte de tudo. Lastimar não mais viver daqui a cem anos é tão absurdo quanto lamentar não ter nascido um século antes. A morte é origem de outra vida. Nascemos entre lágrimas e muito nos custou entrar na vida atual; passando para uma nova vida, despojamo-nos do que fomos na precedente. Não pode ser grave uma coisa que acontece uma só vez; será razoável recear com tanta antecedência acidente de tão curta duração? Em relação à morte, viver pouco ou muito é a mesma coisa, pois nada é longo ou curto quando deixa de existir. Diz Aristóteles que há no rio Hipanis insetos que vivem somente um dia: os que morrem às oito da manhã morrem jovens e os que morrem às cinco da tarde morrem na decrepitude. Quem não acharia divertido que tão insignificante diferença em existências tão efêmeras bastasse para tachá-las de felizes? Semelhante apreciação acerca da duração da vida humana não é menos ridícula se a comparamos com a eternidade, ou simplesmente com a duração das montanhas, dos rios, das estrelas, das árvores e até de certos animais.

A natureza nos ensina: vós saís deste mundo como nele entrastes. Passastes da morte à vida sem que fosse por efeito de vossa vontade e sem temores; tratai de vos conduzirdes de igual maneira aos passardes da vida à morte; vossa morte entra na própria organização do universo: é um fato que tem seu lugar assinalado no decurso dos séculos: “Os mortais se emprestam mutuamente a vida… é a tocha que se transmite de mão em mão nas corridas sagradas” (Lucrécio). Mudarei para vós esse belo entrosamento das coisas? Morrer é a própria condição de vossa criação; a morte é parte integrante de vós mesmos. A existência de que gozais participa da vida e da morte ao mesmo tempo; desde o dia de vosso nascimento caminhais concomitantemente na vida e para a morte: “a primeira hora de vossa vida é uma hora a menos que tereis para viver” (Sêneca) — “nascer é começar a morrer; o último instante de vida é consequência do primeiro” (Manílio). O tempo que viveis, vós o roubais à vida e a restringis proporcionalmente. Vossa vida tem como efeito conduzir-vos à morte. E enquanto viveis estais constantemente sob a ameaça de morte, e, mortos, já não viveis mais; ou, se assim preferis, a morte sucede à vida, logo, durante a vida estais moribundos; e a morte atinge muito mais duramente e essencialmente o moribundo do que o morto. Se soubestes usar a vida e gozá-la quanto pudestes, ide-vos e vos declareis satisfeitos: “por que não sair do banquete da vida como um conviva saciado?” (Lucrécio). Se não a soubestes usar, se ela vos foi inútil, que vos importa perdê-la? E, se ela continuasse, em que a empregaríeis? “Para que prolongar dias de que não se saberá tirar melhor proveito do que no passado?” (idem). A vida em si não é um bem nem um mal. Torna-se bem ou mal segundo o que dela fazeis. E, se vivestes um dia, já vistes tudo, pois um dia é igual a todos os outros. Uma é a luz, uma é a noite. Esse sol, essa lua, essas estrelas, em sua disposição, são os mesmos que apreciaram vossos antepassados e que conhecerão vossos descendentes. “Vossos sobrinhos não verão nada mais do que viram seus pais” (Manílio). E, em última análise, pode-se dizer que a totalidade dos atos diversos que comporta a comédia a que vos convidei se cumpre no decurso de um ano, cujas quatro estações, se o observastes, abarcam a infância, a adolescência, a idade viril e a velhice do mundo. Essa marcha é constante; não a modifico nunca e sem cessar ela se repete, e assim será eternamente: “Giramos sempre em torno do mesmo círculo” (Lucrécio); “o ano retoma sem descontinuar a estrada percorrida” (Virgílio). Não está em meus projetos inovar para vós a ordem das coisas: “não posso nada imaginar, nada inventar de novo para vos agradar; é, e será sempre, a repetição das mesmas cenas” (Lucrécio). Daí vosso lugar a outros como outros vos deram o seu. A igualdade é a primeira condição da equidade. Quem se há de queixar de uma medida que atinge a todos? Podeis prolongar vossa vida, o que quer que façais não diminuirá em nada o tempo que tendes para serdes mortos. Por mais comprida que seja, vossa vida não será nada, e esse estado que lhe sucederá — e que pareceis tanto temer — terá a mesma duração que se houvésseis morrido no berço: “Vivei quantos séculos quiserdes, nem por isso será menos eterna a morte” (idem).

Nesse estado em que vos porei, não tereis motivo para descontentamento: “Ignorais que não vos sobrevirá um outro vós mesmo, o qual, vivo, vos possa chorar como morto e gemer sobre o vosso cadáver!” (Lucrécio). E essa vida, que tanto lamentais perder, não mais a desejareis: “Não teremos mais com que nos inquietarmos nem com nós mesmos, nem com a vida… nenhuma saudade teremos da existência” (idem). “A morte é menos temível do que nada, se é que alguma coisa menos que nada é possível” (idem). Morto ou vivo, vós não lhe escapais: vivo, porque sois; morto, porque não sois mais. Por outro lado, ninguém morre antes da hora. O tempo que perdeis não vos pertence mais do que o que precedeu vosso nascimento, e não vos interessa: “Considerai em verdade que os séculos inumeráveis, já passados, são para vós como se não tivessem sido” (idem).

Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração, e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim? E se o fato de ter companheiros vos pode consolar, pensai que o mundo inteiro segue caminho idêntico: “As raças futuras vos seguirão por sua vez” (idem).

Tudo obedece ao mesmo impulso a que obedeceis. Haverá algo que não envelheça como vós envelheceis? Milhares de homens, milhares de animais, milhares de outras criaturas morrem no mesmo instante em que morreis: “não há uma só noite, nem um só dia, em que não se ouçam, misturados aos gemidos dos recém-nascidos, os gritos de dor em torno dos esquifes” (idem).

Por que tentar recuar se não vos é permitido voltar atrás? Vistes mais de um indivíduo morrer que se satisfez com morrer, fugindo assim a grandes misérias; já deparastes com alguém que se achou prejudicado? E não será tolice condenar uma coisa que não conheceis nem pessoalmente nem através de outro? Por que vos queixardes de mim e do destino? Nós vos estaremos prejudicando? Cabe a vós nos governar ou, ao contrário, dependeis de nós? Por mais moço que sejais, vossa vida chegou ao fim; um homem de pequena estatura é tão completo quanto outro muito grande. Nem a estatura do homem nem a sua existência têm medidas determinadas.

Quíron recusou a imortalidade quando Cronos, seu pai, deus do tempo e da mortalidade, lhe revelou as condições dela. Imaginai a que ponto uma vida sem fim seria menos tolerável e mais penosa para o homem do que a que lhe foi dada. Se não tivésseis a morte, vós me amaldiçoaríeis sem cessar por vos haver privado dela. Foi propositalmente que a ela juntei alguma amargura, a fim de impedir que, ante a comodidade dela, não a buscásseis com avidez. Para vos trazer a essa moderação que solicito de vós, de não abreviar a vida e não tentar esquivar a morte, temperei-as pelas sensações mais ou menos suaves, mais ou menos duras que vos podem conceder. Ensinei a Tales, o primeiro entre vossos sábios, que viver e morrer são igualmente indiferentes; o que o impeliu a responder, muito sabiamente, a alguém que lhe perguntava por que então não se matava: porque é indiferente. A água, a terra, o fogo, tudo o que constitui meu domínio e contribui para vossa vida, não contribuem mais do que à morte. Por que temeis vosso último dia? Ele não vos entrega mais à morte do que o faz cada um dos dias anteriores. Não é o último passo a causa de nossa fadiga; ele apenas a determina. Todos os dias levam à morte, só o último a alcança. Eis os sábios conselhos que vos dá a natureza, nossa mãe.

Frequentemente indaguei de mim mesmo por que, na guerra, a perspectiva ou a presença da morte, nossa ou de outrem, nos impressiona muito menos do que em nossos lares. Se assim não fosse, um exército se comporia unicamente de médicos e de chorões. Estranho igualmente que a morte, em sendo a mesma para todos, a acolham com mais calma os camponeses e o povo miúdo que os outros. Creio, em verdade, que são esses semblantes de circunstância e esse aparato lúgubre com que a cercam, que nos impressionam mais do que ela própria. Quando ela se aproxima, há uma modificação total em nossa vida cotidiana: mães, mulheres e crianças gritam e se lamentam. Inúmeras pessoas nos visitam, consternadas; a gente da casa fica aí, pálida e desesperada; a obscuridade reina no quarto; acendem-se velas; à nossa cabeceira juntam-se padres e médicos; tudo, em suma, em volta de nós se dispõe como para inspirar horror; ainda não rendemos o último suspiro, e já estamos amortalhados e enterrados. As crianças se amedrontam quando as pessoas, mesmo suas conhecidas, se apresentam mascaradas; pois é o que ocorre nesse momento. Arranquemos as máscaras das coisas como das pessoas e, por baixo, veremos muito simplesmente a morte. A mesma com a qual partiu ontem, sem maior pavor, tal ou qual criado ou camareira. Feliz é a morte que nos surpreende sem que haja tempo para semelhantes preparativos!”


Notas

[1] Filósofo que Montaigne qualifica como músico.

[2] “Maître Jean” é o apelido que se dava outrora aos pedantes, sábios ou doutores.

[3] Sa denreé — no caso, suas ilusões.

[4] No texto, “les plus mortes morts”, isto é, as mortes em que tudo morre ao mesmo tempo, em oposição às mortes em que o indivíduo se extingue gradualmente, através de sucessivas perdas de faculdades.


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Os irmãos Karamázov é o último romance de Dostoiévski. No fundo, ele resume toda a criatividade do escritor, trazendo à baila as “malditas” questões existenciais que o afligiram a vida inteira, com especial relevo para a flagrante degradação moral da humanidade afastada dos ideais cristãos. Cheia de peripécias, a narrativa põe em foco três protagonistas irmãos, representantes dos mais diversos aspectos da realidade russa – o libertino Dmítri, o niilista Ivan e o sublime Aliocha, a fim de alumiar as profundezas insondáveis do coração entregue ao pecado, corrompido por dúvidas ou transbordante de amor. Eis o retrato de uma família desestruturada, desde a sua raiz, e que vai culminar em uma tragédia sem precedentes, que irá abalar a nação russa, e simultaneamente, vai impelir as pessoas a reverem seus conceitos sobre família. Embora a efervescência da trama se concentre nas relações familiares e suas consequências devastadoras, esta colossal obra traz personagens e histórias secundárias interessantíssimas, que também nos proporcionam boas lições e reflexões.

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(...) “O leitor imaginará talvez que o meu herói fosse um indivíduo doentio e extático, um pálido sonhador, macilento, atacado de tuberculose. Pelo contrário, Aliócha, que tinha então dezenove anos, era um jovem bem feito, de faces vermelhas, de olhar límpido, transbordante de saúde. Era mesmo bastante belo, de talhe esbelto, cabelos castanhos, rosto regular, embora um pouco alongado, olhos dum cinzento-escuro, brilhantes, rasgados, pensativo e parecendo bastante calmo. Dir-se-á talvez que faces vermelhas não impedem de ser fanático ou místico; ora, parece-me que Aliócha era, mais que qualquer outra pessoa, realista. Oh! bem decerto, no convento cria perfeitamente nos milagres, mas, na minha opinião, os milagres jamais perturbarão o realista. Não são eles que o levam a crer.

Um verdadeiro realista, se é incrédulo, encontra sempre em si a força e faculdade de não crer mesmo no milagre e, se este último se apresenta como um fato incontestável, duvidará de seus sentidos em vez mesmo de admitir o fato. Se o admitir, será como um fato natural, mas desconhecido dele até então. No realista, a fé não nasce do milagre, mas o milagre da fé. Se o realista adquire a fé, deve necessariamente, em virtude de seu realismo, admitir também o milagre. O apóstolo Tome declarou que não acreditaria enquanto não visse; em seguida, diz: "Meu Senhor e meu Deus!" Fora o milagre que o obrigara a crer? Muito provavelmente não, mas ele acreditava unicamente porque desejava crer; talvez tivesse já a fé inteira nas dobras ocultas de seu coração, mesmo quando declarava: "Só acreditarei depois que tiver visto.” (...)

“Sou um palhaço autêntico, inato, reverendíssimo senhor, a mesma coisa que um idiota; não nego que um espírito mau more talvez em mim, bem modesto, cm todo caso; se fosse mais importante, ter-se-ia alojado em outra parte, somente não no senhor, Piotr Alieksándrovitch, porque o senhor não é importante. Em compensação, creio, creio em Deus. Nestes últimos tempos, tinha dúvidas; mas agora espero sublimes palavras.

Pareço-me com o filósofo Diderot, reverendíssimo senhor. Sabe o senhor, santíssimo padre, como se apresentou ele diante do metropolita Platon, no reinado da Imperatriz Catarina? Entrou e largou sem mais: "Não há Deus**. Ao que o grande prelado respondeu, de dedo erguido: "O insensato disse em seu coração: 'não há Deus!*** Imediatamente Diderot lançou-se a seus pés: "Creio", exclamou ele, "e quero ser batizado”. Batizaram-no ali mesmo. A Princesa Dachkova foi a madrinha, e Potiomkin o padrinho...

— Fiódor Pávlovitch, é intolerável! Porque o senhor mesmo sabe que está mentindo e que essa estúpida anedota é falsa; por que fazer-se malicioso? — proferiu com voz trêmula Miúsov, que já não se podia conter.

— Toda a minha vida pressenti que era isso uma mentira! — exclamou Fiódor Pávlovitch, entusiasmando-se. — Em compensação, senhores, dir-lhes-ei toda a verdade. Eminente stáriets, perdoe-me, eu mesmo inventei esse fim, ainda há pouco, com o batismo de Diderot; isto jamais me ocorrera antes. Inventei-o para dar certo ar picante ao caso. Se me faço de malicioso, Piotr Alieksándrovitch, é para ser mais gentil. De resto, por vezes, não sei eu mesmo por quê. Quanto a Diderot, ouvi contar isto: "O insensato disse..." umas vinte vezes na minha juventude, pelos proprietários de terras do país, quando morava entre eles; ouvi-o dizer, Piotr Alieksándrovitch, de sua própria tia, Mavra Fomínichna. Até agora, estão todos persuadidos de que o ímpio Diderot fora à casa do metropolita Platon para discutir a existência de Deus... ”
(...)​

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“Walden” é uma das mais famosas obras de não ficção. É uma história real sobre a conexão entre o humano e a natureza. Livro escrito por Henry David Thoreau e publicado em 1854, é composto por uma série de 18 ensaios que narram as experiências dos dois anos, dois meses e dois dias que o autor vivia em uma cabana construída por ele mesmo, nas proximidades do Lago Walden (lago em Concord, Massachusetts, nos EUA). Thoreau buscou uma vida simples na costa norte de Walden Pond, no leste de Massachusetts (1845-1847), onde questionou os valores do trabalho, do lazer, autossuficiência e desconexão do ser humano industrial com seu ambiente natural. O escritor construiu uma pequena cabana nas terras de seu amigo Ralph Waldo Emerson. Lá ele vivia quase completamente autossuficiente, cultivava seus próprios vegetais, praticava o vegetarianismo e trabalhava ocasionalmente. Sua intenção era viver de uma maneira simples e ter tempo para contemplar, caminhar pela floresta, escrever e comungar com a Natureza. Thoreau tinha a crença de que o humano moderno deveria simplificar seu modo de vida e suas necessidades materiais, pois assim encontraria não apenas a verdadeira paz, mas também a conexão com sua essência. Se você viu o filme Into de Wild (“Na Natureza Selvagem” de 2007), dirigido por Sean Penn, certamente se lembrará de algumas frases contidas neste livro.

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(...) “Acho saudável ficar sozinho na maior parte do tempo. Ter companhia, mesmo a melhor, logo se torna cansativo e dispersivo. Amo ficar só. Nunca encontrei companhia tão sociável quanto a solidão. Em geral ficamos mais sozinhos quando estamos entre homens que quando ficamos em nossos aposentos. Um homem pensando ou trabalhando está sempre sozinho, esteja onde estiver. A solidão não é medida pelos quilômetros de espaço entre um humano e seus iguais.“ (...) “Um cão vivo é melhor que um leão morto. O homem deve se enforcar porque pertence a uma raça de pigmeus e não ser o maior pigmeu que puder. Que cada um cuide de seus negócios e se esforce para ser como foi feito. Por que deveríamos ter tanta pressa em obter sucesso em empreitadas tão desesperadas? Se um homem não acompanha seus companheiros, talvez seja porque ouve uma batida diferente. Que ele caminhe de acordo com a música que ouve, não importa quão marcada ou distante seja.” (...) “Fui para a floresta porque desejava viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida e ver se poderia aprender o que tinham a ensinar, e não descobrir, quando estivesse à beira da morte, que não tinha vivido.” (...) “A Natureza não faz perguntas e não responde àquelas feitas pelos mortais. Há muito tempo tomou sua resolução.” (...)

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Os irmãos Karamázov é o último romance de Dostoiévski. No fundo, ele resume toda a criatividade do escritor, trazendo à baila as “malditas” questões existenciais que o afligiram a vida inteira, com especial relevo para a flagrante degradação moral da humanidade afastada dos ideais cristãos. Cheia de peripécias, a narrativa põe em foco três protagonistas irmãos, representantes dos mais diversos aspectos da realidade russa – o libertino Dmítri, o niilista Ivan e o sublime Aliocha, a fim de alumiar as profundezas insondáveis do coração entregue ao pecado, corrompido por dúvidas ou transbordante de amor. Eis o retrato de uma família desestruturada, desde a sua raiz, e que vai culminar em uma tragédia sem precedentes, que irá abalar a nação russa, e simultaneamente, vai impelir as pessoas a reverem seus conceitos sobre família. Embora a efervescência da trama se concentre nas relações familiares e suas consequências devastadoras, esta colossal obra traz personagens e histórias secundárias interessantíssimas, que também nos proporcionam boas lições e reflexões.

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(...) “O leitor imaginará talvez que o meu herói fosse um indivíduo doentio e extático, um pálido sonhador, macilento, atacado de tuberculose. Pelo contrário, Aliócha, que tinha então dezenove anos, era um jovem bem feito, de faces vermelhas, de olhar límpido, transbordante de saúde. Era mesmo bastante belo, de talhe esbelto, cabelos castanhos, rosto regular, embora um pouco alongado, olhos dum cinzento-escuro, brilhantes, rasgados, pensativo e parecendo bastante calmo. Dir-se-á talvez que faces vermelhas não impedem de ser fanático ou místico; ora, parece-me que Aliócha era, mais que qualquer outra pessoa, realista. Oh! bem decerto, no convento cria perfeitamente nos milagres, mas, na minha opinião, os milagres jamais perturbarão o realista. Não são eles que o levam a crer.

Um verdadeiro realista, se é incrédulo, encontra sempre em si a força e faculdade de não crer mesmo no milagre e, se este último se apresenta como um fato incontestável, duvidará de seus sentidos em vez mesmo de admitir o fato. Se o admitir, será como um fato natural, mas desconhecido dele até então. No realista, a fé não nasce do milagre, mas o milagre da fé. Se o realista adquire a fé, deve necessariamente, em virtude de seu realismo, admitir também o milagre. O apóstolo Tome declarou que não acreditaria enquanto não visse; em seguida, diz: "Meu Senhor e meu Deus!" Fora o milagre que o obrigara a crer? Muito provavelmente não, mas ele acreditava unicamente porque desejava crer; talvez tivesse já a fé inteira nas dobras ocultas de seu coração, mesmo quando declarava: "Só acreditarei depois que tiver visto.” (...)

“Sou um palhaço autêntico, inato, reverendíssimo senhor, a mesma coisa que um idiota; não nego que um espírito mau more talvez em mim, bem modesto, cm todo caso; se fosse mais importante, ter-se-ia alojado em outra parte, somente não no senhor, Piotr Alieksándrovitch, porque o senhor não é importante. Em compensação, creio, creio em Deus. Nestes últimos tempos, tinha dúvidas; mas agora espero sublimes palavras.

Pareço-me com o filósofo Diderot, reverendíssimo senhor. Sabe o senhor, santíssimo padre, como se apresentou ele diante do metropolita Platon, no reinado da Imperatriz Catarina? Entrou e largou sem mais: "Não há Deus**. Ao que o grande prelado respondeu, de dedo erguido: "O insensato disse em seu coração: 'não há Deus!*** Imediatamente Diderot lançou-se a seus pés: "Creio", exclamou ele, "e quero ser batizado”. Batizaram-no ali mesmo. A Princesa Dachkova foi a madrinha, e Potiomkin o padrinho...

— Fiódor Pávlovitch, é intolerável! Porque o senhor mesmo sabe que está mentindo e que essa estúpida anedota é falsa; por que fazer-se malicioso? — proferiu com voz trêmula Miúsov, que já não se podia conter.

— Toda a minha vida pressenti que era isso uma mentira! — exclamou Fiódor Pávlovitch, entusiasmando-se. — Em compensação, senhores, dir-lhes-ei toda a verdade. Eminente stáriets, perdoe-me, eu mesmo inventei esse fim, ainda há pouco, com o batismo de Diderot; isto jamais me ocorrera antes. Inventei-o para dar certo ar picante ao caso. Se me faço de malicioso, Piotr Alieksándrovitch, é para ser mais gentil. De resto, por vezes, não sei eu mesmo por quê. Quanto a Diderot, ouvi contar isto: "O insensato disse..." umas vinte vezes na minha juventude, pelos proprietários de terras do país, quando morava entre eles; ouvi-o dizer, Piotr Alieksándrovitch, de sua própria tia, Mavra Fomínichna. Até agora, estão todos persuadidos de que o ímpio Diderot fora à casa do metropolita Platon para discutir a existência de Deus... ”
(...)​

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Um unico adendo, essa edição da martin tem bastante erros e alterações por conta de ser baseada em uma tradução antiga em frances que depois foi traduzido para o portugues.
Tenho ele pela editora 34, que dizem ser mais fiel ao original russo. Mas é de qualquer maneira um otimo livro
 
Um unico adendo, essa edição da martin tem bastante erros e alterações por conta de ser baseada em uma tradução antiga em frances que depois foi traduzido para o portugues.
Tenho ele pela editora 34, que dizem ser mais fiel ao original russo. Mas é de qualquer maneira um otimo livro

Ora bolas, temos um crítico literário (ou "sommelier de livros") no fórum!!! :coolface:

Sinceramente, desconhecia esse fato. Pelo pouco que sei, não há diferenças gritantes assim entre essas edições. A edição da Martin Claret tem capa dura e uma fita amarela para marcar as páginas, e visualmente, acho maravilhosa - foi bom ver o tom de cor, sentir o "peso", cheiro e textura do livro. Mas compreendo que adquirir uma tradução direta de boa qualidade é sempre preferível. Um tradutor que lida com outra língua e suas regras, com outra cultura e um escritor de outra época, e consequentemente as traduções acabam tendo perdas (estéticas, de estilo e significados), até mesmo numa tradução direta (que visa se aproximar da obra original; e no caso, nada como uma tradução direta do russo para poder "russificar" o texto - visto que se tratar da língua materna do escritor).

Grato pelo adendo! :vinho:

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“O filósofo ignorante” é uma das obras finais de Voltaire, escrita na última década de sua vida. Nela, o autor fez uma síntese dos principais pontos de sua filosofia, apresentando-os em forma de perguntas (ou “ignorâncias”, como ele as definia). Ao discutir tópicos como o sentido da vida, a liberdade, a moral, a Natureza, a sociedade e a justiça, Voltaire procura manter uma postura humilde, sem perder de vista as limitações do conhecimento humano, mas sempre com o espírito crítico e mordaz que contribuíram para que se tornasse um dos pensadores mais populares da modernidade.

Conhecido pela sua perspicácia na defesa das liberdades civis, inclusive a liberdade religiosa, Voltaire foi uma dentre as muitas figuras do Iluminismo cujas obras e ideias influenciaram pensadores importantes tanto da Revolução Francesa quanto da Americana. Suas ideias revolucionárias acabaram por fazer com que fosse exilado de seu país de origem, a França. As ideias de Voltaire se desenvolveram em todas as direções, e são atuais. Para ele, a Filosofia era mais uma atitude do espírito, mais um meio de combate, uma concepção de vida, do que dogmas e teorias. Este volume vem soma-se aos demais da obra de Voltaire - que viveu para projetar sobre os problemas do mundo com racionalidade e lucidez (o que para os poderosos costuma ser indesejável).

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“Quem és? De onde vens? Que fazes? Que será de ti? Essas são as perguntas elementares que todos os seres inteligentes do universo devem fazer, apesar de ninguém (ou algo) as responder...”

“Assim detidos já no primeiro passo e nos curvando em vão sobre nós mesmos, ficamos apavorados de nos buscarmos sempre e de nunca nos encontrarmos.”

“Nascido de um germe vindo de outro germe, houve uma sucessão contínua, um desenvolvimento sem fim desses germes e a Natureza inteira sempre existiu como uma consequência necessária desse Ser Supremo que existia por si mesmo? Se acreditasse apenas no meu fraco entendimento, eu diria: parece-me que a Natureza sempre foi animada. Não posso conceber que a causa que age continuamente e visivelmente sobre ela, podendo agir em todos os tempos, não tenha agido sempre. Uma eternidade ociosa no Ser Agente e necessário parece-me incompatível. Sou levado a crer que o mundo sempre emanou dessa causa primitiva e necessária, como a luz emana do sol. Por qual encadeamento de ideias me vejo sempre forçado a crer eternas as obras do Ser Eterno? Minha concepção, por pusilânime que seja, tem a força de atingir o Ser necessário que existe por si mesmo e não tem a força de conceber o nada. A existência de um único átomo parece-me provar a eternidade da existência, mas nada me prova o nada. Quê! Teria havido o nada no espaço onde hoje existe alguma coisa? Isso me parece incompreensível. Não posso admitir esse nada, a menos que a revelação venha fixar minhas ideias que se lançam para além do tempo/espaço.”

“O Caos nunca existiu a não ser em nossa cabeça e serviu apenas para que Hesíodo e Ovídio compusessem belos versos.”

“Nesse círculo estreito que nos encerra, vejamos, pois, o que estamos condenados a ignorar e o que podemos conhecer um pouco. Já vimos que nenhum primeiro motor ou nenhum primeiro princípio pode ser apreendido por nós.”

“Estou ainda nos primeiros passos desse vasto caminho; quero saber se essa inteligência divina é algo de absolutamente distinto do Universo, mais ou menos como o escultor é distinto da estátua, ou se essa alma do mundo está unida ao mundo e o penetra; mais ou menos, também, como o que chamo minha alma, se ela está unida ao meu corpo, e segundo essa ideia da Antiguidade tão bem expressa em Virgílio: Mens agitat molem, et magno se corpore miscet (A alma vivifica a matéria e a este grande corpo se mistura).”

“Vejo-me detido, de repente, em minha vã curiosidade. Miserável mortal, se não posso sondar minha própria inteligência, se não posso saber o que me anima, como conhecerei a inteligência inefável que preside visivelmente à matéria inteira? Sei que há... e tudo me demonstra; porém, onde está a bússola que me introduzirá para sua morada eterna e ignorada?”

“Esse ser eterno, essa causa universal me dá as ideias: pois não são os objetos (matéria bruta) que as dão. Uma matéria bruta não pode enviar pensamentos à minha mente...” (...) “Sabemos bem que não há semelhança alguma, relação alguma entre os objetos e nossas ideias e nossas sensações.”

“Interrogo a multidão de animais diferentes, que possuem todos o movimento e o comunicam à sua maneira, desfrutam das mesmas sensações que eu e têm uma dose de ideias e de memórias com todas as paixões. Eles sabem ainda menos que eu o que são, por que são e o que será deles.”

“Sou um frágil animal; ao nascer não tenho força, nem conhecimento, nem instinto; não posso sequer me arrastar até as mamas de minha mãe, como o fazem todos os quadrúpedes; só adquiro algumas ideias e um pouco de força quando meus órgãos começam a se desenvolver. Essa força aumenta em mim até o momento em que, não podendo mais crescer, diminui a cada dia. O poder de conceber ideias também aumenta até seu termo e a seguir se desvanece aos poucos, imperceptivelmente.”

“Não podendo ter nenhuma noção a não ser por experiência, é impossível que possamos jamais saber o que é a matéria. Tocamos, vemos as propriedades dessa substância, mas a própria palavra substância – o que está por baixo, nos adverte suficientemente que esse por baixo nos será desconhecido para sempre: por mais que descubramos algo de sua aparência, restará sempre esse por baixo a descobrir. Pela mesma razão, jamais saberemos por nós mesmos o que é o espírito. É uma palavra que originariamente significa sopro e da qual nos servimos para tentar exprimir, de maneira vaga e grosseira, aquilo que nos faz ter pensamentos. No entanto, ainda que tivéssemos, por um prodígio que não cabe supor, uma ligeira ideia da substância desse espírito, não teríamos avançado mais; nunca poderíamos adivinhar como essa substância recebe sentimentos e pensamentos. Sabemos que temos um pouco de inteligência, mas como a temos? Esse é o segredo da Natureza e ela não o revela a nenhum mortal.”

“O que é impossível para minha natureza tão fraca e limitada, que tem uma duração tão curta, seria também impossível em outros planetas com outras espécies de seres? Haverá inteligências superiores e mestras de todas as suas ideias, que pensam e que sentem tudo o que elas querem? Não sei; conheço apenas minha fraqueza, não tenho noção alguma das forças ocultas...”

“Suspeito (...) tenho até mesmo motivos para acreditar que os planetas que giram em torno de si mesmos e dos inumeráveis sóis que enchem o espaço são povoados de seres sensíveis e pensantes; porém uma barreira eterna nos separa e nenhum desses habitantes dos outros planetas se comunicou conosco.”

“Convencido por minha pouca razão de que há um Ser necessário, eterno, inteligente, de quem recebo minhas ideias, sem poder adivinhar nem como nem por que, pergunto o que é esse ser, se ele tem a forma de alguma das espécies inteligentes que desconhecemos (…) Já disse que nada sei a esse respeito. Contudo, não posso afirmar que isso seja impossível, pois sei de planetas muito superiores ao meu extensão, cercados de mais satélites do que a Terra. Não é de modo algum contrário a probabilidade que eles sejam povoados por inteligências muito superiores à minha e por corpos mais robustos, mais ágeis e duráveis. No entanto, como a existência deles não tem relação alguma com a minha (não que saibamos), deixo aos poetas da Antiguidade a tarefa de fazer Vênus descer de seu suposto terceiro céu, e Marte, do quinto; devo buscar apenas a ação do ser necessário sobre mim mesmo.” (...)

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Assombrado com as explicações pseudocientíficas e místicas que ocupam cada vez mais os espaços dos meios de comunicação, nesse livro Carl Sagan reafirmou o poder positivo e benéfico da Ciência e da Tecnologia para iluminar os dias de hoje e recuperar os valores da racionalidade. Escrito em 1995, a partir de palestras e artigos que o autor publicava em revistas e jornais, “O mundo assombrado pelos demônios” está cheio críticas, muitas vezes divertidas, as pseudociências, às concepções excêntricas e aos irracionalismos do nosso tempo, mais a descrição de suas lembranças de infância, quando seus pais o colocaram em contato pela primeira vez com os dois modelos de pensamento fundamentais para o método científico: o ceticismo e a admiração.

É um livro que reforça a importância da Ciência, do método científico, do ensino científico nas escolas e sobre a divulgação da ciência na mídia. Aborda questões críticas sobre os modelos energéticos insustentáveis e o aquecimento global, a diminuição de investimentos e recursos para políticas públicas e a Ciência, e a assustadora queda de qualidade na Educação (nas escolas estadunidenses). Em suma, é um livro contra a ignorância e o anticientificismo, a incultura e obscuridade do pensamento. Carl Sagan dedicou a vida ao desenvolvimento e divulgação da ciência, recebendo diversos prêmios e medalhas por essa contribuição. Recomendado! :vinho:

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“Ele tinha um apetite natural pelas maravilhas do universo. Queria conhecer a ciência. O problema é que toda a ciência se perdera pelos filtros antes de chegar até ele. Os nossos temas culturais, o nosso sistema educacional, os nossos meios de comunicação haviam traído esse homem. O que a sociedade permitia que escoasse pelos seus canais era principalmente simulacro e confusão. Nunca lhe ensinara como distinguir a ciência verdadeira da imitação barata.”

“Os relatos espúrios que enganam os ingênuos são acessíveis. As abordagens céticas são muito mais difíceis de encontrar. O ceticismo não vende bem.”

“Ele simplesmente aceitou o que as fontes de informação mais difundidas e acessíveis diziam ser verdade. Por ingenuidade, foi sistematicamente enganado e ludibriado.”

“O físico britânico Michael Faraday alertou contra a tentação poderosa de procurar as evidências e aparências que estão a favor de nossos desejos, e desconsiderar as que lhes fazem oposição (...) Acolhemos com boa vontade o que concorda com nossas ideias, assim como resistimos com desgosto ao que se opõe a nós, enquanto todo preceito de bom senso exige exatamente o oposto.”

“Como um terremoto que confunde a nossa confiança no próprio solo que estamos pisando, pode ser profundamente perturbador desafiar as nossas crenças habituais, fazer estremecer as doutrinas em que aprendemos a confiar.”

“Essa é uma das razões pelas quais as religiões organizadas não me inspiram confiança. Que líderes dos principais credos reconhecem que suas crenças talvez sejam incompletas ou errôneas, e criam institutos para revelar possíveis deficiências doutrinárias?”

“Um extraterrestre, recém-chegado à Terra – examinando o que em geral apresentamos às nossas crianças na televisão, no rádio, no cinema, nos jornais, nas revistas, nas histórias em quadrinhos e em muitos livros, poderia facilmente concluir que fazemos questão de lhes ensinar assassinatos, estupros, crueldades, superstições, credulidade e consumismo. Continuamos a seguir esse padrão e, pelas constantes repetições, muitas das crianças acabam aprendendo essas coisas. Que tipo de sociedade não poderíamos crias se, em vez disso, lhes incutíssemos a ciência e um sentimento de esperança?”

“A sedução do maravilhoso embota nossas faculdades críticas.”

“Quanto mais desejamos que seja verdade, mais cuidadosos temos que ser.”

“Aqueles que têm alguma coisa para vender, aqueles que desejam influencia a opinião pública, aqueles que estão no poder, diria um cético, têm um interesse pessoal em desencorajar o ceticismo.”

“Só confie numa testemunha quando ela fala de questões em que não se acham envolvidos nem o seu interesse próprio, nem as suas paixões, nem os seus preconceitos, nem o amor pelo maravilhoso.”

“É impressionante como as emoções podem se acirrar sobre uma questão a respeito da qual conhecemos de fato muito pouco.”

“O medo de coisas invisíveis é a semente natural daquilo que todo mundo, em seu íntimo, chama de religião.” [“Leviatã”, Thomas Hobbes]”

“Em nossa vida diária, incorporamos sem esforço e inconscientemente normas culturais que transformamos em coisas nossas.”

“Um homem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo. Em suma, inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis, pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento.” [“Novum Organon”, Francis Bacon]

“Uma das lições mais tristes da história é a seguinte: se formos enganados por muito tempo, a nossa tendência é evitar qualquer evidência do logro. Já não nos interessamos em descobrir a verdade. O engano nos aprisionou. É simplesmente doloroso demais admitir, mesmo para nós mesmos, que fomos enganados.”

“Quando aparece alguém que desafia o nosso sistema de crenças, declarando que sua base não é suficientemente boa (...) tal fato se torna muito mais do que uma busca pelo conhecimento. Nós o sentimos como um ataque pessoal.”

“Ninguém pode ser inteiramente aberto a novas ideias ou completamente cético. Todos temos que traçar o limite em algum lugar.”

“Conheço muitos adultos que ficam desconcertados quando as crianças pequenas fazem perguntas científicas. Por que a Lua é redonda? (...) "Como é que você queria que a Lua fosse, quadrada?" As crianças logo reconhecem que esse tipo de pergunta incomoda os adultos. Novas experiências semelhantes, e mais uma criança perde o interesse pela ciência. Porque os adultos têm de fingir onisciência diante de crianças de seis anos é algo que nunca vou compreender. O que há de errado em admitir que não sabemos alguma coisa? A nossa autoestima é assim tão frágil?”

“O que elas querem que seja verdade, elas acreditam que é verdade.”

“Somos viciados em significados.”

“Os estereótipos são numerosos. (...) A interpretação mais generosa atribui esse modo de pensar a uma espécie de preguiça intelectual: em vez de julgar as pessoas pelos seus méritos e deficiências individuais, nós nos concentramos em uma ou duas informações a seu respeito, que depois inserimos num pequeno número de escaninhos previamente construídos. Isso poupa o trabalho de pensar, embora em muitos casos custe o preço de cometer uma profunda injustiça. Com isso, aquele que pensa por estereótipos também fica protegido do contato com a enorme variedade de pessoas, a multiplicidade de maneiras do ser humano.”

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Assombrado com as explicações pseudocientíficas e místicas que ocupam cada vez mais os espaços dos meios de comunicação, nesse livro Carl Sagan reafirmou o poder positivo e benéfico da Ciência e da Tecnologia para iluminar os dias de hoje e recuperar os valores da racionalidade. Escrito em 1995, a partir de palestras e artigos que o autor publicava em revistas e jornais, “O mundo assombrado pelos demônios” está cheio críticas, muitas vezes divertidas, as pseudociências, às concepções excêntricas e aos irracionalismos do nosso tempo, mais a descrição de suas lembranças de infância, quando seus pais o colocaram em contato pela primeira vez com os dois modelos de pensamento fundamentais para o método científico: o ceticismo e a admiração.

É um livro que reforça a importância da Ciência, do método científico, do ensino científico nas escolas e sobre a divulgação da ciência na mídia. Aborda questões críticas sobre os modelos energéticos insustentáveis e o aquecimento global, a diminuição de investimentos e recursos para políticas públicas e a Ciência, e a assustadora queda de qualidade na Educação (nas escolas estadunidenses). Em suma, é um livro contra a ignorância e o anticientificismo, a incultura e obscuridade do pensamento. Carl Sagan dedicou a vida ao desenvolvimento e divulgação da ciência, recebendo diversos prêmios e medalhas por essa contribuição. Recomendado! :vinho:

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“Ele tinha um apetite natural pelas maravilhas do universo. Queria conhecer a ciência. O problema é que toda a ciência se perdera pelos filtros antes de chegar até ele. Os nossos temas culturais, o nosso sistema educacional, os nossos meios de comunicação haviam traído esse homem. O que a sociedade permitia que escoasse pelos seus canais era principalmente simulacro e confusão. Nunca lhe ensinara como distinguir a ciência verdadeira da imitação barata.”

“Os relatos espúrios que enganam os ingênuos são acessíveis. As abordagens céticas são muito mais difíceis de encontrar. O ceticismo não vende bem.”

“Ele simplesmente aceitou o que as fontes de informação mais difundidas e acessíveis diziam ser verdade. Por ingenuidade, foi sistematicamente enganado e ludibriado.”

“O físico britânico Michael Faraday alertou contra a tentação poderosa de procurar as evidências e aparências que estão a favor de nossos desejos, e desconsiderar as que lhes fazem oposição (...) Acolhemos com boa vontade o que concorda com nossas ideias, assim como resistimos com desgosto ao que se opõe a nós, enquanto todo preceito de bom senso exige exatamente o oposto.”

“Como um terremoto que confunde a nossa confiança no próprio solo que estamos pisando, pode ser profundamente perturbador desafiar as nossas crenças habituais, fazer estremecer as doutrinas em que aprendemos a confiar.”

“Essa é uma das razões pelas quais as religiões organizadas não me inspiram confiança. Que líderes dos principais credos reconhecem que suas crenças talvez sejam incompletas ou errôneas, e criam institutos para revelar possíveis deficiências doutrinárias?”

“Um extraterrestre, recém-chegado à Terra – examinando o que em geral apresentamos às nossas crianças na televisão, no rádio, no cinema, nos jornais, nas revistas, nas histórias em quadrinhos e em muitos livros, poderia facilmente concluir que fazemos questão de lhes ensinar assassinatos, estupros, crueldades, superstições, credulidade e consumismo. Continuamos a seguir esse padrão e, pelas constantes repetições, muitas das crianças acabam aprendendo essas coisas. Que tipo de sociedade não poderíamos crias se, em vez disso, lhes incutíssemos a ciência e um sentimento de esperança?”

“A sedução do maravilhoso embota nossas faculdades críticas.”

“Quanto mais desejamos que seja verdade, mais cuidadosos temos que ser.”

“Aqueles que têm alguma coisa para vender, aqueles que desejam influencia a opinião pública, aqueles que estão no poder, diria um cético, têm um interesse pessoal em desencorajar o ceticismo.”

“Só confie numa testemunha quando ela fala de questões em que não se acham envolvidos nem o seu interesse próprio, nem as suas paixões, nem os seus preconceitos, nem o amor pelo maravilhoso.”

“É impressionante como as emoções podem se acirrar sobre uma questão a respeito da qual conhecemos de fato muito pouco.”

“O medo de coisas invisíveis é a semente natural daquilo que todo mundo, em seu íntimo, chama de religião.” [“Leviatã”, Thomas Hobbes]”

“Em nossa vida diária, incorporamos sem esforço e inconscientemente normas culturais que transformamos em coisas nossas.”

“Um homem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo. Em suma, inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis, pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento.” [“Novum Organon”, Francis Bacon]

“Uma das lições mais tristes da história é a seguinte: se formos enganados por muito tempo, a nossa tendência é evitar qualquer evidência do logro. Já não nos interessamos em descobrir a verdade. O engano nos aprisionou. É simplesmente doloroso demais admitir, mesmo para nós mesmos, que fomos enganados.”

“Quando aparece alguém que desafia o nosso sistema de crenças, declarando que sua base não é suficientemente boa (...) tal fato se torna muito mais do que uma busca pelo conhecimento. Nós o sentimos como um ataque pessoal.”

“Ninguém pode ser inteiramente aberto a novas ideias ou completamente cético. Todos temos que traçar o limite em algum lugar.”

“Conheço muitos adultos que ficam desconcertados quando as crianças pequenas fazem perguntas científicas. Por que a Lua é redonda? (...) "Como é que você queria que a Lua fosse, quadrada?" As crianças logo reconhecem que esse tipo de pergunta incomoda os adultos. Novas experiências semelhantes, e mais uma criança perde o interesse pela ciência. Porque os adultos têm de fingir onisciência diante de crianças de seis anos é algo que nunca vou compreender. O que há de errado em admitir que não sabemos alguma coisa? A nossa autoestima é assim tão frágil?”

“O que elas querem que seja verdade, elas acreditam que é verdade.”

“Somos viciados em significados.”

“Os estereótipos são numerosos. (...) A interpretação mais generosa atribui esse modo de pensar a uma espécie de preguiça intelectual: em vez de julgar as pessoas pelos seus méritos e deficiências individuais, nós nos concentramos em uma ou duas informações a seu respeito, que depois inserimos num pequeno número de escaninhos previamente construídos. Isso poupa o trabalho de pensar, embora em muitos casos custe o preço de cometer uma profunda injustiça. Com isso, aquele que pensa por estereótipos também fica protegido do contato com a enorme variedade de pessoas, a multiplicidade de maneiras do ser humano.”

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Esse livro deveria ser o primeiro livro apresentado nas escolas. Deveriam fazer as crianças lerem todos os anos. É o livro que considero essencial para a formação de um ser humano.
 
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“De Brevitate Vitae” apresenta o pensamento de Sêneca, um dos principais nomes da Filosofia na História. Neste breve ensaio, o filósofo romano nos leva a refletir sobre uma questão fundamental para a humanidade: como usar o tempo em favor de uma vida plena e feliz. Tema universal e relevante até os dias de hoje. Enfim, é um livro atemporal - por isso é considerado um Clássico. É um daqueles livros que vale a pena ser lido (especialmente quando valorizamos o essencial e quando estamos num inevitável processo de amadurecimento e autoconhecimento. Leitura (e reflexão) altamente recomendada! :vinho:

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“1-1: A maior parte dos mortais, Paulino, queixa-se da malevolência da Natureza, porque estamos destinados a um momento da eternidade, e, segundo eles, o espaço de tempo que nos foi dado corre tão veloz e rápido, de forma que, à exceção de muito poucos, a vida abandonaria a todos em meio aos preparativos mesmos para a vida. E não é somente a multidão e a turba insensata que se lamenta deste mal considerado universal: a mesma impressão provocou queixas também de homens ilustres. Daí o protesto do maior dos médicos: (2) “A vida é breve, longa, a arte.” Daí o litígio (de nenhuma forma apropriado a um homem sábio) que Aristóteles teve com a Natureza: “aos animais, ela concedeu tanto tempo de vida, que eles sobrevivem por cinco ou dez gerações; ao homem, nascido para tantos e tão grandes feitos, está estabelecido um limite muito (3) mais próximo.” Não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que ela já passou (4) por nós sem que tivéssemos percebido. O fato é o seguinte: não recebemos uma vida breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores. Tal como abundantes e régios recursos, quando caem nas mãos de um mau senhor, dissipam-se num momento, enquanto que, por pequenos que sejam, se são confiados a um bom guarda, crescem pelo uso, assim também nossa vida se estende por muito tempo, para aquele que sabe dela bem dispor.

2-1: Por que nos queixamos da Natureza? Ela mostrou-se benevolente: a vida, se souberes utilizá-la, é longa. Mas uma avareza insaciável apossa-se de, um de outro, uma laboriosa dedicação a atividades inúteis, um embriaga-se de vinho, outro entorpece-se na inatividade; a este, uma ambição sempre dependente das opiniões alheias o esgota, um incontido desejo de comerciar leva aquele a percorrer todas as terras e todos os mares, na esperança de lucro; a paixão pelos assuntos militares atormenta alguns, sempre preocupados com perigos alheios ou inquietos com seus próprios; há os que, por uma servidão voluntária, se desgastam numa ingrata solicitude a seus superiores; (2) a busca da beleza de um outro ou o cuidado com sua própria ocupa a muitos; a maioria, que não persegue nenhum objetivo fixo, é atirada a novos desígnios por uma vaga e inconstante leviandade, desgostando-se com isso; alguns não definiram para onde dirigir sua vida, e o destino surpreende-os esgotados e bocejantes, de tal forma que não duvido ser verdadeiro o que disse, à maneira de oráculo, o maior dos poetas: “Pequena é a parte da vida que (3) vivemos.” Pois todo o restante não é vida, mas tempo. Os vícios atacam-nos, e rodeiam-nos de todos os lados e não permitem que nos reergamos, nem que os olhos se voltem para discernir a verdade, mantendo-os submersos, pregados às paixões. Nunca é permitido às suas vítimas voltar a si: se por acaso acontecer de encontrarem alguma trégua, ainda assim, tal como no fundo do mar, no qual, mesmo após a tempestade, ainda há agitação, eles ainda assim são o joguete das paixões, e nenhum repouso (4) lhes é concedido. Pensas que falo daqueles cujos vícios são declarados? Vê aqueles cuja fortuna faz acorrer a multidão: são sufocados pelos seus bens. A quantos as riquezas não são um peso! Quantos não verteram seu sangue por causa de sua eloquência e da presteza diária com que exibiam seus talentos! Quantos não estão pálidos por causa de seus contínuos prazeres! A quantos a vasta multidão de clientes não dá nenhuma liberdade! Passa os olhos por todos, desde os mais pequenos até os mais poderosos: este advoga, aquele assiste, um é acusado, outro defende, e um outro ainda julga-ninguém reivindica nada para si, todos consomem mutuamente suas vidas. Pergunta por aqueles cujos nomes se aprendem de cor e verás que eles são identificados pelas características seguintes: este é servidor daquele, que o é de um outro-ninguém pertence a si próprio. (5) E, portanto, é o cúmulo da insensatez, a indignação de alguns: queixam-se do desdém de seus superiores, porque estes não tiveram tempo de ir ter com eles quando o desejavam. Quem ousará queixar-se da soberba de um outro, quando ele mesmo não tem um momento livre para si próprio? E aquele, contudo, apesar de seu aspecto insolente, olhou-te uma vez com consideração, sem saber quem eras, prestou atenção às tuas palavras e mesmo recebeu-te junto de si; tu não te dignaste a considerar nem a ti mesmo. Portanto não há razão para pedires contas de teus favores a quem quer que seja, uma vez que, quando os fizeste, não desejavas estar com um outro, mas não podias estar contigo.

3-1: Todos os espíritos que alguma vez brilharam consentirão neste único ponto: jamais se cansarão de se espantar com a cegueira das mentes humanas. Não se suporta que as propriedades sejam invadidas por ninguém, e, se houver uma pequena discórdia quanto à medida de seus limites, os homens recorrem a pedras e armas; no entanto, permitem que outros se intrometam em suas vidas, a ponto de eles próprios induzirem seus futuros possessores; não se encontra ninguém que queira dividir seu dinheiro, mas a vida, entre quantos cada um a distribui! São avaros em preservar seu patrimônio, enquanto, quando se trata de desperdiçar o tempo, são muito pródigos com relação à única (2) coisa em que a avareza é justificada. Por isso, agrada-me interrogar um qualquer, dentre a multidão dos mais velhos: “Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos! Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto deste tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida (3) do que contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste uma resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como planejaras! Quando empregaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste a aparência imperturbável, o ânimo intrépido? Quantas obras fizeste para ti próprio? Quantos não terão esbanjado tua vida, sem que percebesses o que estavas perdendo; o quanto de tua vida não subtraíram sofrimentos desnecessários, tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis conversações, e quão pouco não te restou do que era teu! Compreendes que morres (4) prematuramente.” Qual é pois o motivo? Vivestes como se fósseis viver para sempre, nunca vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou; vós o perdeis, como se ele fosse farto e abundante, ao passo que aquele mesmo dia que é dado ao serviço de outro homem ou outra coisa seja o último. Como mortais, vos aterrorizais de tudo, mas desejais tudo como se fôsseis (5) imortais. Ouvirás muitos dizerem: “Aos cinquenta anos me refugiarei no ócio, aos sessenta estarei livre de meus encargos.” E que fiador tens de uma vida tão longa? E quem garantirá que tudo irá conforme planejas? Não te envergonhas de reservar para ti apenas as sobras da vida e destinar à meditação somente a idade que já não serve mais para nada? Quão tarde começas a viver, quando já é hora de deixar de fazê-lo. Que negligência tão louca a dos mortais, de adiar para o quinquagésimo ou sexagésimo ano os prudentes juízos, e a partir deste ponto, ao qual poucos chegaram, querer começar a viver!

4-1: Verás os homens mais poderosos, e elevados aos mais altos postos, deixar escapar palavras nas quais desejam e louvam o ócio e o preferem a todos os seus bens. Por um momento desejam abdicar daquela sua proeminência, se for possível fazê-lo em segurança, pois ainda que nada venha do exterior assaltá-la ou abalá-la, (2) por si só a fortuna se desfaz. O divino Augusto, a quem os deuses, mais do que a qualquer outro mortal, favoreceram, nunca deixou de almejar repouso para si próprio e desejar folga dos assuntos públicos; todas as suas falas voltavam sempre ao mesmo ponto: a esperança de ócio. Isto distraia suas penas com o seguinte consolo, fingido, contudo doce: um dia haveria (3) de viver para si mesmo. Em certa carta endereçada ao Senado, como prometesse que seu repouso não haveria de ser desprovido de dignidade e seria condizente com sua glória passada, encontrei essas palavras: “É porém mais ilusório que essas coisas se realizem do que podem ser prometidas. Contudo o desejo daquele tempo, que tanto ambiciono, me anima de tal forma, que antecipo algo do desejado pela doçura das palavras (4) pronunciadas, ainda que tarde seu deleite.” O ócio era uma coisa tão almejada, que, por não poder dele usufruir, antecipava-o em pensamento. Ele, que via todas as coisas dependerem unicamente de si, que decidia a sorte dos homens e das nações, com muita satisfação pensava no dia em que se despojaria de sua grandeza. (5) Estava ciente de quanto suor exigiam aqueles bens que brilhavam por todas as terras, de quantas inquietações reprimidas eles ocultavam: forçado primeiramente a combater os cidadãos, depois os amigos, e finalmente os mais próximos de si, em mar e em terra fez correr sangue. Tendo levado a guerra à Macedônia, Sicília, Egito, Ásia e a quase todas as costas, dirigiu os exércitos já cansados de oprimir romanos às guerras externas. Enquanto pacifica os Alpes e subjuga inimigos infiltrados em meio à paz do Império e estende as fronteiras para além do Reno, do Eufrates e do Danúbio, na própria Roma contra ele se voltavam os punhais de Murena, Cepião, Lépido, Egnácio e de tantos outros. (6) Ainda não havia escapado das armadilhas destes, e sua filha e muitos jovens nobres entregavam-se ao adultério, como se isso fosse um sacramento, atormentando dessa forma sua velhice; e ainda havia uma segunda e temível união de uma certa mulher a um Antônio. Ele arrancava esses males com suas próprias mãos, e outros, latentes, irrompiam; tal como num corpo ferido e sangrando, uma outra parte qualquer sempre se rompia. Por isso desejava o ócio; todos os seus labores residiam nessa esperança e pensamento: tal era o desejo daquele que podia satisfazer todos os desejos.

5-1: Marco Cícero, atirado entre homens como Catilina, Clódio, Pompeu e Crasso, uns, manifestos inimigos, outros, dúbios amigos, enquanto oscilava com a República e procurava sustentá-la no seu naufrágio, até finalmente afundar com ela, sempre inquieto na prosperidade e impaciente na adversidade, quantas vezes não amaldiçoou seu próprio consulado, que era louvado (2) não sem motivo, mas sem moderação. Que coisas lamentáveis ele diz numa carta a Ático, na época em que Pompeu, o Pai, já havia sido vencido, e seu filho restaurava na Espanha as armas despedaçadas! “Perguntas-me o que faço aqui?”-diz ele. “Semi-livre, quedo-me em minha vila de Túsculo.” Ainda acrescenta muitas outras palavras, nas quais lamenta a vida passada, queixa-se do presente e desespera-se do futuro. Cícero se diz semilivre mas, por Júpiter!, nunca o sábio recorrerá a um termo tão baixo, nunca será semilivre, mas será um homem de íntegra e sólida liberdade, desapegado, senhor de si e bem acima dos demais. Pois quem pode estar acima daquele que está acima da Fortuna?

6-1: Diz-se que Lívio Druso, homem violento e arrebatador, após ter dado curso a novas leis e às más medidas dos Gracos, com o apoio de uma vasta multidão de toda a Itália, não vendo uma saída para sua política, que já não mais podia levar adiante, nem, uma vez precipitada, abandonar, amaldiçoou sua vida agitada desde o princípio e declarou nunca ter tido férias, nem mesmo quando menino. Com efeito, adolescente ainda, trajando a toga pretexta, ousou fazer recomendações sobre os réus aos Juízes e fazer prevalecer tão eficazmente sua opinião no fórum, que é tido como certo que algumas causas foram por ele arrebatadas. (2) Em que não haveria de dar uma ambição tão prematura? Poder-se-ia imaginar que uma audácia tão precoce haveria de resultar em fonte de grande prejuízo público e particular. E, portanto, era tarde para se queixar de nunca ter tido férias, ele que, desde criança, já era um perturbador e um elemento nocivo ao fórum. Discute-se se ele teria se suicidado, pois sucumbiu de um ferimento recebido na virilha; há quem duvide se sua morte foi voluntária, mas ninguém, de (3) que foi oportuna. Seria supérfluo mencionar os que, embora pareçam aos outros os mais felizes dos homens, declaram eles próprios que na verdade odeiam todas as ações de suas vidas, mas com essas declarações não mudaram nem a si próprios nem aos outros, pois mal pronunciavam essas palavras e as paixões faziam-nos (4) recair em seus hábitos. Mas, por Júpiter!, uma vida como a vossa, mesmo que dure mais de mil anos, será sempre determinada pelos mais estreitos limites: estes vícios podem devorar séculos e séculos. O espaço de tempo que temos, a razão pode na verdade dilatá-lo; e, embora a Natureza faça-o correr, necessariamente ele vos escapará, pois que não vos apossais dele, nem o retendes ou fazeis demorar a mais fugidia de todas as coisas, mas deixais que se perca como se fosse, uma coisa supérflua e substituível.

7-1: Conto entre os piores os que nunca estão disponíveis para nada, senão para o vinho e os prazeres sensuais, pois não há ocupação mais vergonhosa. Outros, embora se prendam à imagem vazia da glória, contudo erram honradamente; podes me enumerar os avarentos, os turbulentos, ou os que se entregam a ódios e guerras injustas: todos estes pecam de uma maneira mais viril. Mas os que se entregam à gula e aos prazeres sensuais ostentam uma degradação (2) desonrosa. Examina todo o tempo deles: verifica quanto gastam em cálculos avaros, quanto em preparar emboscadas, quanto temendo-as, quanto bajulando, quanto sendo bajulados; e quanto tempo ocupam em compromissos judiciários, seus ou alheios, ou com banquetes-que já se tornaram mesmo uma obrigação: verás que nem seus bens, nem seus males, os deixam respirar. (3) Finalmente, todos concordam que um homem ocupado não pode fazer nada bem: não pode se dedicar à eloquência, nem aos estudos liberais, uma vez que seu espírito, ocupado em coisas diversas, não se aprofunda em nada, mas, pelo contrário, tudo rejeita, pensando que tudo lhe é imposto. Nada é menos próprio do homem ocupado do que viver, pois não há outra coisa que seja mais difícil de aprender. Professores das outras artes, há vários e por toda parte, dentre algumas dessas, vemos crianças terem atingido tanta maestria, que chegam até a ensiná-las. Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu talvez te espantes, a vida (4) toda é um aprender a morrer. Muitos dos maiores homens, tendo afastado todos os obstáculos e renunciado às riquezas, a seus negócios e aos prazeres, empregaram até o último de seus dias para aprender a viver, contudo muitos deles deixaram a vida tendo confessado ainda não sabê-lo-e muito menos ainda (5) o sabem os que mencionei acima. Creia-me, é próprio de um grande homem e de quem se eleva acima dos erros humanos, não consentir que lhe tomem um instante sequer da vida, e assim toda sua vida é muito longa, uma vez que se dedicou todo a si próprio, não importa quanto ela tenha durado. Nem um instante dela permaneceu descuidado ou ocioso, ou esteve subordinado a um outro e, portanto, ele, seu guarda parcimonioso, não encontrará ninguém que julgue ter vivido dignamente a ponto de querer trocar sua vida com a dele. Portanto, a este seu tempo foi suficiente, mas àqueles que tiveram muito de sua vida subtraído (6) pelo povo, ela necessariamente faltou. E nem por isso há motivo para pensares que eles às vezes não compreendem seu erro. Certamente ouvirás muitos dos que são esmagados por sua grande prosperidade, vez por outra, exclamar de entre a multidão de clientes, ou de seus processos jurídicos, ou de outras honoríficas misérias: “Não me deixam viver!” E haveriam de (7) deixar? Todos os que te reclamam para si te afastam de tuas ocupações. Quantos dias te tomou aquele réu? E aquele candidato? E a velha, já cansada de enterrar herdeiros? E aquele que finge ser doente para excitar a cobiça dos caçadores de testamentos? E aquele amigo poderoso, que te mantém, não em sua amizade, mas em seu cortejo? Faz o cômputo dos dias de tua vida: verás que restaram muito poucos dias para ti mesmo. (8) Tendo aquele obtido os cargos com que tanto sonhava, deseja abandoná-los e repete incessantemente: “Quando este ano passará?” Outro proporciona espetáculos públicos, que tanto desejou que lhe fossem cabidos por sorte, e agora diz: “quando me livrarei deles?” Disputa-se tanto para ouvir aquele advogado, que ele enche de uma grande multidão todo o fórum, até para além de onde pode ser ouvido. “Quando”-diz ele-“me livrarei disto?” Cada um faz precipitar sua vida e (9) padece da ânsia do futuro e de tédio do presente. Mas o que emprega todo o tempo consigo próprio, que ordena cada dia como se fosse uma vida, nem deseja o amanhã, nem o teme. Pois que novo prazer há, que qualquer hora lhe possa imediatamente trazer? Tudo lhe é conhecido, tudo foi desfrutado até a saciedade. Do resto, que a Fortuna disponha como queira: a vida já lhe foi assegurada. Nada se lhe pode adicionar ou arrebatar, e, mesmo que algo se acrescente a ela, seria como se alimentassem alguém já farto de alimentos quaisquer: estará recebendo algo que nem mais (10) deseja. Portanto não há por que pensar que alguém tenha vivido muito, por causa de suas rugas ou cabelos brancos: ele não viveu por muito tempo, simplesmente foi por muito tempo. Pensarias ter navegado muito, aquele que, tendo se afastado do porto, foi apanhado por violenta tempestade, errou para cá e para lá e ficou a dar voltas, conforme a mudança dos ventos e o capricho dos furacões, sem contudo sair do lugar? Ele não navegou muito, mas foi muito acossado.

8-1: Costumo estranhar quando vejo alguns pedindo tempo, e aqueles a quem se pede mostrarem-se muito complacentes; ambos consideram aquilo pelo que se pede tempo, nenhum, o tempo mesmo: parece que nada se pede e que nada é dado. Brinca-se com a coisa mais preciosa de todas; contudo ela lhes escapa sem que percebam, pois é um incorporal e algo que não salta aos olhos, por isso é considerado muito desprezível, e em razão disto não lhes atribuem valor algum. (2) Os homens recebem pensões e aluguéis com muito prazer e concentram neles suas preocupações, esforços e cuidados, mas ninguém dá valor ao tempo; usa-se dele a rédeas soltas, como se nada custasse. Porém, quando doentes, se estão próximos do perigo de morte, prostram-se aos joelhos dos médicos; ou, se temem a pena capital, estão prontos a gastar todos os seus bens para viver. Tamanha é a discórdia de seus (3) sentimentos! Se fosse possível apresentar a cada um a conta dos anos futuros, da mesma forma que podemos fazer com os passados, como tremeriam aqueles que vissem restar-lhes poucos anos e como os poupariam! Pois, se é fácil administrar o que, embora curto, é certo, deve-se conservar com muito cuidado o que não se pode saber (4) quando há de acabar. Contudo não há por que pensar que eles ignoram que coisa preciosa é o tempo: costumam dizer aos que amam muitíssimo que estão dispostos a lhes dar parte de seus dias. E realmente dão, sem se aperceberem disto, mas dão de forma a subtraírem vários anos a si, sem aumentar os daqueles. Mas ignoram o fato mesmo de estarem perdendo seus anos, por isso lhes é tolerável a perda de um bem que não é (5) notado. Ninguém devolverá teus anos, ninguém te fará voltar a ti mesmo. Uma vez principiada, a vida segue seu curso e não reverterá nem o interromperá, não se elevará, não te avisará de sua velocidade. Transcorrerá silenciosamente, não se prolongará por ordem de um rei, nem pelo apoio do povo. Correrá tal como foi impulsionada no primeiro dia, nunca desviará seu curso, nem o retardará. Que sucederá? Tu estás ocupado, e a vida se apressa; por sua vez virá a morte, à qual deverás te entregar, queiras ou não.

9-1: Pode haver algo mais estúpido que o modo de ver de alguns-falo daqueles que deixam de lado a prudência. Ocupam-se para poder viver melhor: armazenam a vida, gastando-a! Fazem seus planos a longo prazo; no entanto protelar é do maior prejuízo para a vida: arrebata-nos cada dia que se oferece a nós, rouba-nos o presente ao prometer o futuro. O maior impedimento para viver é a expectativa, a qual tende para o amanhã e faz perder o momento presente. Do que está nas mãos da Fortuna, dispões; o que está nas tuas, despedes. Para onde ficas a olhar? Para que tendes? Tudo que está por vir se assenta na incerteza: desde (2) já, vive! Proclama o maior dos poetas e, como inspirado por divinos lábios, canta este canto de salvação: “Os melhores dias da vida dos tristes mortais São os primeiros a fugir.” “Por que hesitar?”-diz ele-“por que ficar sem nada fazer? Se não ocupares o dia, ele fugirá” E, contudo, se o tiveres ocupado, ainda fugirá; portanto deve-se lutar contra a celeridade do tempo usando de velocidade, tal como se deve beber depressa de uma (3) corrente rápida e que não fluirá para sempre. O poeta emprega magnificamente as palavras para censurar a infinita contemporização, pois diz “o melhor dia”, e não “a melhor idade”. Como é que tu, seguro e demorado em meio a uma tão grande fuga de tempo, dispões para ti os meses e os anos, numa longa série, de acordo com tua avidez? O poeta fala do dia, e deste (4) mesmo dia que está fugindo. Acaso se duvida que os melhores dias fujam primeiro aos míseros mortais, isto é, aos ocupados? A velhice oprime tanto seus espíritos pueris que chegam a ela surpresos e desarmados, pois nada em sua vida foi previsto: bruscamente e desprevenidos nela caíram; não a sentiam chegar (5) diariamente. Tal como uma conversa ou uma leitura ou alguma reflexão mais séria distrai os viajantes, que se veem chegados ao destino sem notar que dele se aproximavam, assim esta contínua e tão rápida caminhada da vida, que dormindo ou acordados fazemos no mesmo passo, aos ocupados não aparece senão no fim.

10-1: Quisesse eu dividir minha tese em tópicos e argumentos, ocorrer-me-iam muitos exemplos, pelos quais provaria que é muito breve a vida dos ocupados. Costumava dizer Fabiano, que não era um desses filósofos acadêmicos, mas um dos verdadeiros e antigos: “contra as paixões deve-se lutar com arrojo, não com sutilezas; e deve-se romper a linha de batalha com um grande assalto, não com tímidas tentativas.” Não aprovava sofismas: “pois devemos vencer as paixões, não espicaçá-las”. Contudo, para demonstrar às suas vítimas seu desvario, devemos instruí-las, não lamentá-las. (2) A vida divide-se em três períodos: o que foi, o que é, e o que há de ser. Destes, o que vivemos é breve; o que havemos de viver, duvidoso; o que já vivemos, certo. Pois, sobre este último, a Fortuna perdeu os direitos: (3) é o que não se submete ao arbítrio de ninguém. Eis o que escapa aos ocupados, pois eles não têm tempo para reconsiderar o passado e, mesmo se tivessem, ser-lhes-ia desagradável a recordação de uma coisa da qual se arrependem. Portanto é a contragosto que voltam seus pensamentos ao tempo mal empregado e não ousam reviver aquelas horas, cujos vícios, embora estivessem dissimulados pelo atrativo de um prazer momentâneo, (4) desvendam-se com a recordação. Ninguém se voltará de bom grado ao passado, exceto aquele cujas ações estão todas submetidas à censura de sua consciência, que nunca se engana. Aquele que ambiciosamente muitas coisas cobiçou, orgulhosamente desprezou, insolentemente venceu, traiçoeiramente enganou, desonestamente roubou e prodigamente dissipou seus bens, necessariamente terá que temer suas próprias recordações. Ora, de nossa vida, esta é a parte inviolável e já consagrada, que está acima de todas as vicissitudes humanas, que foi subtraída ao império da Fortuna e que não pode ser afetada pela pobreza, nem pelo medo, nem pelo assédio das doenças. Não se pode perturbá-la ou roubá-la de seu possessor, pois sua posse é perpétua e livre de receios. Os dias apresentam-se a nós um a um e momento por momento, entretanto todos os dias do passado se apresentarão a nós quando ordenarmos, e consentirão em ser apropriados e examinados à vontade-coisa que os ocupados não têm (5) tempo de fazer. É próprio de uma mente segura de si e sossegada poder percorrer todas as épocas de sua vida; mas o espírito dos ocupados, tal como se estivesse subjugado, não pode se voltar sobre si mesmo e se examinar. Portanto sua vida se precipita num abismo; e, tal como não é de nenhum proveito procurar encher uma ânfora, por mais que nela se coloque líquido, se não há fundo que o receba ou sustenha, assim também não importa quanto tempo tens à disposição: se não tens como retê-lo, ele vazará como de almas rachadas (6) e furadas. O tempo presente é brevíssimo, tanto que a alguns parece não existir, pois está sempre em movimento; flui e precipita-se; deixa de ser antes de vir a ser; é tão incapaz de deter-se, quanto o mundo ou as estrelas, cujo infatigável movimento não lhes permite permanecer no mesmo lugar. Pertence, pois, aos ocupados, apenas o tempo presente, que é tão breve que não pode ser abarcado; e este mesmo escapa-lhes, ocupados que estão em muitas coisas.

11-1: Enfim, queres saber quão pouco vivem os ocupados? Vê como desejam viver longamente. Velhos decrépitos mendigam em suas orações um acréscimo de uns poucos anos; procuram parecer menos idosos e lisonjeiam-se com mentiras e encontram tanto prazer em enganar a si próprios, que é como se enganassem junto o destino. Mas, quando uma enfermidade qualquer adverte-os de que são mortais, morrem tomados de pavor, não como se deixassem a vida, mas como se ela lhes fosse arrancada. Ficam gritando que foram tolos em não viver e que, se por acaso escaparem da doença, haverão de viver no ócio; então, tomam consciência de quão inútil foi adquirir o que não desfrutaram, e de como todos os seus esforços resultaram em (2) vão. Mas para aquele cuja vida esteve livre de preocupações, por que não haveria ela de ser longa? Dela nada foi transferido a um outro, nada foi atirado a um e outro lado, nada foi dado à Fortuna, nada desperdiçado por negligência, nada foi esbanjado com prodigalidade, nada ficou sem ser empregado: toda ela, por assim dizer, teve proveito. E, deste modo, por mais curta que seja, ela é mais que suficiente; e portanto, quando lhe vier o último dia, o sábio não hesitará em caminhar para a morte com passo firme.

12-1: Talvez tu me perguntes a quem eu chamo de “ocupados”. Não há por que pensar que entendo serem ocupados apenas aqueles contra os quais se mandam os cães para expulsá-los da basílica, ou os que vemos sobressair, seja orgulhosamente em meio à multidão de seus clientes, seja desprezivelmente da de outro, ou aqueles cujos compromissos obrigam a abandonar seus lares para ir bater à porta do outro ou aqueles a quem a lança do pretor põe ocupados devido a um (2) lucro infame e que um dia haverá de apodrecer. O ócio de alguns é ocupado: quer em sua vila ou em seu leito, quer em meio à solidão, mesmo quando estão afastados de todos, eles próprios prejudicam a si mesmos; não devemos chamar sua vida de ociosa, mas de ocupação indolente. Por acaso chamas de ocioso o que coleciona, com escrupuloso cuidado, os bronzes coríntios, preciosos devido à mania de uns poucos, e consome a maior parte de seus dias em meio a ferrugentos pedaços de metal? E o que se senta num ginásio (que vergonha! os vícios dos quais somos vítimas nem mesmo são romanos), para apreciar as pelejas dos rapazes que se estapeiam? E o que classifica seus rebanhos de cavalos segundo a cor e a idade, ou os que (3) patrocinam os mais novos campeões de atletismo? Quê? Tu chamas ociosos os que passam muitas horas no cabeleireiro, aparando o que cresceu na noite anterior, discutindo a respeito de cada fio de cabelo, colocando em ordem as madeixas desarranjadas, ou ajeitando sobre a testa as que estão falhas aqui e ali? Como ficam irados, se o barbeiro foi um pouco negligente, crendo que estava a aparar os cabelos de um verdadeiro homem! Como se encolerizam, se algo de sua cabeleira foi cortado, se algo está fora de ordem, se tudo não cai em seus devidos cachos! Qual destes não preferiria ver a desordem na República, a ver a de seus cabelos? Quem não se preocupa mais com a elegância de sua cabeça do que com sua saúde? Qual não prefere ser bem penteado a ser honesto? Tu chamas ociosos os que se (4) preocupam com pentes e espelhos? E quanto àqueles que se ocupam em compor, ouvir e aprender canções, e atormentam a voz, cuja reta entoação a Natureza fez muito simples e a melhor, com inflexões de desajeitadas modulações? Eles estão sempre a estalar os dedos, marcando alguma canção que têm na cabeça e, mesmo quando são chamados para questões sérias e frequentemente tristes, ouvimos seu imperceptível cantarolar. (5) Eles não têm ócio, mas ocupações indolentes. Nem, por Hércules, considero seus festins como tempo livre, uma vez que vejo com quanta solicitude dispõem a prataria, quão diligentemente ajeitam as túnicas de seus jovens prediletos, quão ansiosos ficam por saber como o javali sai das mãos do cozinheiro, ou com que velocidade os escravos jovens, a um dado sinal, correm às suas obrigações, com quanta perícia as aves são cortadas em bocados não muito grandes, ou quão cuidadosamente os infelizes escravos limpam o vômito dos bêbados. É por estes meios que adquirem a fama de serem elegantes e faustosos, e seus males perseguem-nos até mesmo nos menores detalhes da vida, de modo que eles não (6) podem comer nem beber sem afetação. Eu não contaria entre os ociosos aqueles que se fazem transportar para cá e para lá em carruagens ou liteiras, e observam pontualmente a hora de seus passeios, como se não lhes fosse lícito perdê-los; nem os que se fazem lembrar por outro quando devem banhar-se, nadar ou comer: seus espíritos extraordinariamente débeis estão tão enfraquecidos pela lassidão, que eles nem mesmo podem decidir por si sós se têm fome! Já ouvi um desses delicados (se é que se pode chamar de delícias o fato de desaprender os hábitos da vida humana), ao ser retirado do banho e colocado numa cadeira, perguntar: “Ainda estou sentado?” Tu crês que este, que ignora até se está sentado, sabe se vive, se vê, se é ocioso? Não poderia dizer de pronto o que lamento mais: ele (7) realmente não saber ou fingir não sabê-lo. Esses esquecem-se realmente de muitas coisas, mas também fingem esquecer de muitas outras. Certos vícios deleitam-nos como se fossem provas de felicidade: parece-lhes próprio de um homem muito baixo e desprezível saber o que faz. E agora não vás crer que os mimos exageram quando ridicularizam a luxúria. Estes, por Hércules, ultrapassam em muito as invenções dos mimos, e neste nosso século, engenhoso apenas para tais coisas, os vícios progrediram tanto que já podemos acusar os mimos de negligência. É o cúmulo: haver alguém que está tão atolado na luxúria, que se fia na palavra de um (8) outro para saber se está ou não sentado! Portanto esse aí não é ocioso; dá-lhe outro nome: ele está doente, ou, melhor ainda, está morto. É ocioso o que é também consciente de seu lazer. Mas este semivivo, que precisa de alguém que lhe indique a postura do próprio corpo, como poderia ser senhor de um momento sequer de sua vida?

13-1: Seria alongar demais percorrer todos os exemplos daqueles que desperdiçaram suas vidas em jogos de xadrez, bola, ou queimando-se ao sol. Não gozam de ócio aqueles cujos prazeres trazem muitas ocupações. Pois ninguém duvidará que muito se fatigam sem nada obrar, os que se prendem a inúteis questões de (2) literatura-e eles já são multidão entre os romanos! Foi um vício dos gregos investigar quantos remadores teve Ulisses, se a Ilíada ou a Odisseia foi escrita primeiro e, além disso, se eram de um mesmo autor, e outros conhecimentos dessa espécie, que, se os reservas para ti mesmo, em nada deleitam o intelecto, se os publicas, não serás tido por mais douto, mas por mais (3) enfadonho. E eis que esta frívola paixão de aprender inutilidades apossou-se também dos romanos. Há alguns dias ouvi certa pessoa relatando qual foi o primeiro dos generais a fazer tais e tais coisas; que Duílio foi o primeiro a vencer numa batalha naval, que Cúrio Dentato foi o primeiro a conduzir elefantes no seu cortejo triunfal. Mas esses assuntos, ainda que não conduzam à verdadeira glória, versam sobre exemplos de feitos cívicos; tal ciência não acarreta benefício algum, embora nos prenda a atenção pela futilidade dos feitos. (4) Perdoemos também aos que pesquisam assuntos como este: quem foi o primeiro a persuadir os romanos a embarcar num navio. Foi Cláudio, e por este mesmo motivo cognominado “Caudex”, porque entre os antigos a reunião de várias tábuas chamava-se “caudex”; daí o nome de “codices” às tábuas da lei, e, ainda hoje, as naves que carregam provisões pelo Tibre são (5) chamadas, segundo a maneira antiga, de “codicariae”. Sem dúvida, isto pode ser de algum valor: que Valério Corvino foi o primeiro a subjugar Messina e, tendo tomado para si o nome da cidade conquistada, foi o primeiro da família dos Valérios a denominar-se Messana; e que, tendo sido trocadas as letras por uma gradual corruptela da linguagem popular, chamou-se (6) Messala. Porventura permitirás a alguém ocupar-se também disto: que Lúcio Sulla foi o primeiro a apresentar os leões soltos no Circo, enquanto que anteriormente eram apresentados acorrentados, e que foram enviados arqueiros pelo rei Boco para exterminá-los? Que seja! Façamos também essa concessão. Mas acaso há um mínimo de valor em saber que Pompeu foi o primeiro a proporcionar um combate no Circo com dezoito elefantes, tendo-se enviado criminosos para enfrentá-los, como se fosse uma batalha? O primeiro dos cidadãos e, segundo o que a fama nos legou, homem que sobressaiu entre os antigos líderes por sua bondade, julgou ser um novo tipo de espetáculo digno de memória matar homens de um modo novo. Combatem até a morte?-É pouco. Despedaçam-se?-É pouco. (7) Que sejam esmagados por uma enorme massa de animais! Seria suficiente que esses assuntos passassem ao esquecimento, para que posteriormente um prepotente qualquer não aprendesse e invejasse uma ação tão desumana. Quantas trevas uma grande fortuna causa às nossas mentes! Acreditou estar acima das leis da Natureza quando lançou aquele bando de miseráveis a feras nascidas sob outros céus, quando proporcionou um combate entre animais tão desiguais, quando fez verter tanto sangue diante dos olhos do povo romano-ele, que em breve seria forçado a verter mais ainda. Mas, logo em seguida, o mesmo Pompeu, traído pela deslealdade alexandrina, entregou-se ao último dos escravos para ser abatido; só então compreendeu a vã (8) ostentação de seu Cognome. Mas, para que retorne ao ponto de onde me desviei e para que mostre a inutilíssima diligência de alguns nestes mesmos assuntos: aquele mesmo erudito contava que Metelo, tendo vencido os cartagineses na Sicília, foi o único de todos os romanos a conduzir em seu triunfo cento e vinte elefantes diante do carro, e que Sulla foi o último dos romanos a aumentar o “pomerium”, coisa que, segundo os costumes antigos, só se fazia após a conquista de territórios italianos, e nunca provinciais. Há alguma utilidade maior em saber que o monte Aventino, como assegurava aquele, situa-se para além do “pomerium” por uma dessas duas razões: ou porque a plebe tenha-se afastado daí, ou porque, quando Remo tomava os auspícios, o voo das aves não foi favorável-e ainda outros inumeráveis conhecimentos, que, ou estão abarrotados de mentiras, ou são desta natureza? (9) Pois mesmo que se admita que eles contam essas coisas todas de boa fé e que se responsabilizam pelo que foi escrito, contudo esses conhecimentos servirão para minorar os erros de alguém? Refrearão as paixões de alguém? Farão alguém mais generoso, mais corajoso, mais justo? Às vezes meu caro Fabiano dizia duvidar se era melhor não empreender estudo algum do que se envolver com os deste gênero.

14-1: Dentre todos os homens, somente são ociosos os que estão disponíveis para a sabedoria; eles são os únicos a viver, pois, não apenas administram bem sua vida, mas acrescentam-lhe toda a eternidade. Todos os anos que se passaram antes deles são somados aos seus. A menos que sejamos os maiores dos ingratos, aqueles fundadores das sublimes filosofias nasceram para nós, e eles nos preparam o caminho para a vida. Graças aos seus esforços, conduzem-nos das trevas à luz, aos mais belos conhecimentos. Não nos é vedado o acesso a nenhum século, somos admitidos a todos; e se desejamos, pela grandeza da alma, ultrapassar os estreitos limites da fraqueza humana, há um vasto espaço de tempo a percorrer. (2) Poderemos discutir com Sócrates, duvidar com Carnéades, encontrar a paz com Epicuro, vencer a natureza humana com a ajuda dos estoicos, ultrapassá-la com os cínicos. Já que a Natureza nos permite entrar em comunhão com toda a eternidade, por que não nos desviarmos dessa estreita e curta passagem do tempo e nos entregarmos com todo nosso espírito àquilo que é ilimitado, eterno e partilhado com os (3) melhores? Os que se desdobram em muitos compromissos sociais, que agitam a si mesmos e a outros, bem conscientes de suas tolices, após terem percorrido diariamente as soleiras de todos e não ter deixado de entrar em nenhuma porta aberta, após terem levado sua interesseira saudação à volta das mais remotas casas, quão pouco não terão eles visto numa cidade tão grande e dilacerada por várias paixões! (4) Quantos haverá cujo sono, dissolução ou grosseria não os afastará? Quantos, após os terem torturado com uma longa espera, não passarão por eles fingindo estarem apressados? Quantos não evitarão aparecer no átrio repleto de clientes, escapando por portas secretas, como se fosse menor descortesia enganar do que despedir! Quantos, ainda meio adormecidos e pesados devido à embriaguez da noite anterior, responderão, àqueles pobres coitados que interromperam seu sono para esperar o despertar de um outro, com o bocejo mais arrogante, mal levantando os (5) lábios! Podemos afirmar que se dedicam a verdadeiros deveres, somente aqueles que desejam estar cotidianamente na intimidade de Zenão, Pitágoras, Demócrito, Aristóteles, Teofrasto e os demais mestres de virtude. Nenhum deles deixará de estar à nossa disposição, nenhum despedirá o que o procurar, sem que o faça mais feliz e mais devotado a ele, nenhum permitirá a quem quer que seja partir de mãos vazias; e eles podem ser encontrados por qualquer homem, tanto durante o dia como à noite.

15-1: Nenhum destes forçará tua morte, todos te ensinarão a morrer, nenhum dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus. Nunca a conversação com eles será perigosa, fatal a amizade ou onerosa a deferência. Conseguirás deles tudo o que quiseres: não será deles a culpa (2) se não tiveres exaurido tudo o que desejas. Que felicidade, que bela velhice não aguarda o que se dispôs a ser seu cliente! Ele terá com quem discutir sobre as menores, bem como sobre as maiores, questões, a quem consultar diariamente sobre si mesmo, de quem ouvir a verdade sem ofensa e ser louvado sem adulação, a cuja (3) semelhança se possa moldar. Costumamos dizer que não está em nosso poder escolher os pais que a sorte nos destinou, mas que nos foram dados ao acaso; contudo é nos permitido ter um nascimento segundo a nossa escolha. Existem famílias dos mais nobres espíritos: escolhe a qual delas queres pertencer, e receberás não apenas seu nome, mas também seus próprios bens, que não terás de vigiar miserável e mesquinhamente, pois, quanto mais forem partilhados pelos homens, maiores (4) se tornarão. Estes te darão o acesso à eternidade, te elevarão àquelas alturas de onde ninguém se precipita. Esta é a única maneira de prolongara existência mortal e, até mais, de convertê-la em imortalidade. As dignidades, os monumentos, tudo o que a ambição impôs por decretos, ou construiu com o suor, depressa há de cair em ruínas: não há nada que a longa passagem dos anos não destrua ou desordene. Mas ela não pode tocar nos conhecimentos que a sabedoria consagrou, nenhuma idade os destruirá ou diminuirá, a seguinte e as sucessivas sempre hão de aumentá-los ainda mais: pois a inveja tem olhos apenas para o que está próximo de si, e admiramos com menos malícia o que está (5) distante. Portanto a vida do filósofo estende-se por muito tempo, e ele não está confinado nos mesmos limites que os outros. É o único a não depender das leis do gênero humano: todos os séculos servem-no como a um deus. Algo distancia-se no passado? Ele recupera-o com a memória. Está no presente? Ele o desfruta. Há de vir no futuro? Ele o antecipa. A reunião de todos os momentos num só torna-lhe longa a vida.

16-1: É extremamente breve e agitada a vida dos que esquecem o passado, negligenciam o presente e receiam o futuro; quando chegam ao termo de suas existências, os pobres coitados compreendem tardiamente que (2) estiveram por longo tempo ocupados em nada fazer. E, pelo fato de fazerem frequentes apelos à morte, não há por que pensar que fica provado que eles tenham usufruído duma longa existência. Sua cegueira os atormenta com emoções incertas e que os faz incidir nas próprias coisas que temem: desejam então muitas vezes a morte, (3) porque os aterroriza. Não há ainda razão para se pensar que isto também seja uma prova de uma vida longa:-o fato de muitas vezes os dias lhes parecerem longos, ou porque se queixam de as horas custarem a passar até que chegue o momento do jantar; pois, se porventura as ocupações os abandonam, sentem-se desertados e inquietam-se mesmo no lazer, nem sabem como dispor dele ou matá-lo. Portanto anseiam por uma ocupação qualquer, e todo intervalo de tempo entre duas ocupações lhes é um fardo. E-por Hércules-tal é o que acontece quando se fixa a data dos combates de gladiadores, ou quando se aguarda o dia de um outro gênero qualquer de espetáculo ou divertimento: (4) desejam saltar os dias intermediários! A espera de qualquer coisa por que anseiam lhes é penosa, mas aquele instante que lhes é grato corre breve e rápido e torna-se muito mais breve por sua própria culpa, pois passam de um prazer a outro e não podem permanecer fixos num só desejo. Seus dias não são longos, mas detestáveis, e, por outro lado, quão curtas não lhes parecem as noites que passam nos braços das prostitutas ou (5) entregues ao vinho! Daí também resulta o delírio dos poetas, que nutrem os descaminhos dos homens com ficções nas quais se mostra Júpiter, inebriado do desejo de coito, duplicando a duração da noite. Que outra coisa é, senão inflamar nossos vícios, quando os imputamos aos deuses e se concede a deferência da divindade a um exemplo de fraqueza? Podem estes não achar muito curtas as noites pelas quais pagam tão caro? Perdem o dia na espera da noite, a noite, de medo da aurora.

17-1: Seus próprios prazeres são desassossegados e agitados por vários terrores e, mesmo em meio à maior euforia, assalta-lhes o inquieto pensamento: “até quando, tudo isto?” Por causa desse sentimento, os reis lamentaram seu poderio, e a grandeza de sua fortuna não lhes era grata, mas aterrorizaram-se com o fim que um dia lhes adviria. O mais insolente dos reis da Pérsia, ao ver seus exércitos espalhados por vastos espaços de terra, de modo que nem podia abarcar seu número mas apenas a extensão, desfez-se em lágrimas porque, dizia, em cem anos nenhum dentre tão grande (2) número de jovens haveria de estar vivo. Mas ele próprio, que chorava, estava prestes a apressá-los para aquele destino, fazendo perecer uns no mar, outros em terra, uns no combate, outros na retirada, e dentro de pouco tempo haveria de exterminar aqueles por quem temia (3) o centésimo ano. Qual o motivo de também suas alegrias serem temerosas? É que não brotam de causas sólidas; pelo contrário, o próprio vazio de onde nascem perturba-as. E como pensas serem aqueles momentos (miseráveis, segundo sua própria confissão), já que os próprios motivos pelos quais são exaltados e se (4) colocam acima dos homens são muito impuros? Todos os maiores bens estão cheios de ansiedade, e as maiores fortunas são as menos dignas de crédito; para alimentar a felicidade, faz-se necessária uma outra felicidade, e em paga a uma promessa realizada, outras promessas devem ser feitas. Pois tudo o que nos sucede por obra do acaso é instável, e quanto mais alto nos elevamos, tanto mais estamos sujeitos a cair. É claro que o que está condenado a cair não agrada a ninguém. Portanto é necessariamente a mais miserável e não apenas a mais breve, a vida dos que obtêm com grande esforço algo que conservam com um esforço ainda (5) maior. Em meio a grandes labutas, conseguem o que desejam e ansiosos conservam o que conseguiram; entretanto não têm consciência de que o tempo nunca mais há de voltar. Novas ocupações seguem-se às antigas; a esperança suscita esperança; a ambição, ambição. Não procuram um fim às misérias, mas mudam seu assunto. Nossos cargos nos atormentam? Os dos outros nos tomarão mais tempo. Cessamos de fatigar-nos como candidatos? Começamos novamente como partidários. Renunciamos ao estorvo de acusar? Apresenta-se-nos o de julgar. Deixa de ser juiz? É feito pretor. Envelheceu como administrador de (6) propriedades alheias? Ocupa-se agora com sua riqueza. As vestes guerreiras deram folga a Mário? O consulado não lhe dá sossego. Cincinato apressa-se a escapar do cargo ditatorial? Será novamente chamado do arado. Cipião ainda muito jovem para uma tarefa de tal envergadura, combaterá os cartagineses; vencedor de Aníbal, vencedor de Antíoco, orgulho de seu consulado e garantia do de seu irmão, seria colocado ao lado de Júpiter, não fosse sua intervenção pessoal. As guerras civis perseguirão este salvador da pátria e, tendo sido na juventude honrado como um deus, já velho deleitar-se-á apenas com o desejo de um altivo exílio. Nunca faltarão motivos de inquietação, quer na prosperidade, quer na miséria: a vida será dilacerada entre as ocupações; o ócio sempre desejado, nunca obtido.

18-1: Portanto, meu caro Paulino, aparta-te da multidão e, já bastante acossado pela duração de tua existência, não te afastes de um porto mais tranquilo. Pensa quantas vagas já te acometeram, quantas tempestades, de uma parte, já suportaste na vida particular, quantas, de outra, suscitaste contra ti na vida pública. Teu valor já foi suficientemente testado, em fatigantes e atormentadas provas, o teu valor: tenta ver o que pode realizar no ócio. A maior parte de tua vida, e certamente a melhor, foi dada à República, toma (2) também para ti um pouco de teu tempo. Não te convoco a um retiro indolente e inativo, nem a afogar todo o teu vigoroso caráter no sono ou nos prazeres caros à multidão: isso não é estar em sossego. Encontrarás tarefas maiores que todas as que cumpriste devotadamente até aqui, as quais executarás no retiro e livre de (3) preocupações. Com efeito, tu administras as contas do mundo tão desinteressadamente como as alheias, tão diligentemente como as tuas, tão escrupulosamente como as do Estado. Conquistas a estima num cargo onde é difícil evitar o rancor, contudo, acredite-me, é mais proveitoso fazer a conta de teus anos do que as (4) do trigo do Estado. Este teu vigor de ânimo, capaz das maiores coisas, desvia-o de um cargo, sem dúvida honroso, mas pouco adequado para tornar uma vida feliz; e lembra-te de que não foste educado desde os mais tenros anos nos estudos liberais para que alqueires de trigo te fossem confiados: esperaste algo maior e mais alto. Não faltarão homens de sobriedade comprovada e atividade laboriosa. Jumentos laboriosos são mais aptos a carregar fardos do que cavalos de raça, e quem jamais oprimiu a excelente ligeireza deles com (5) pesadas cargas? Além disso, reflete quantas preocupações não tens ao assumir tanta responsabilidade. Tu lidas com os ventres dos homens! O povo esfaimado não dá ouvidos à razão, não se aplaca pela moderação, nem se dobra a nenhum argumento. Muito recentemente, naqueles poucos dias após a morte de César, diz-se que ele se indignou muitíssimo (se há ainda algum sentimento nos infernos), porque sabia que o povo romano lhe sobrevivia e ainda lhes restavam provisões para sete ou oito dias! E, enquanto ele construía pontes de navios e divertia-se com as forças do Império, estava às nossas portas o pior dos males, até mesmo para os sitiados: a falta de alimentos. Seu infeliz desejo de imitar um rei arrogante, estrangeiro e louco, quase custou à cidade a miséria e a fome, e o (6) que se segue à fome, a ruína de tudo. E então qual não era o estado de espírito daqueles a quem eram confiados os cuidados com o trigo público, e que tinham de enfrentar pedra, ferro, fogo e o próprio Calígula? Com a maior dissimulação, encobriam um tão grande mal incrustado nas vísceras do Estado-e digo que o faziam com razão! Pois algumas doenças devem ser curadas sem que os pacientes as conheçam: a muitos, o conhecimento de sua doença foi a causa da morte.

19-1: Recolhe-te a estas coisas mais tranquilas, mais seguras, melhores! Acaso tu pensas serem o mesmo estas duas coisas: cuidar que o trigo seja transportado ao celeiro, intacto e a salvo da fraude ou negligência dos carregadores, que não se estrague pela fermentação, que esteja bem seco, que seu peso e medida confiram, e elevar-se às coisas sagradas e sublimes para conhecer qual é a substância de deus, seu prazer, sua condição, sua forma, que destino aguarda tua alma, que lugar a Natureza nos destina após nos separarmos do corpo, qual a razão por que ela mantém os corpos mais pesados no centro do universo, suspende os altos às regiões altas, eleva o fogo à mais alta, impele as estrelas às suas trajetórias e ainda outras coisas cheias de notáveis (2) maravilhas? Abandona o solo e volta-te a esses estudos! Agora, enquanto o sangue ferve, deve-se ir, com determinação, para o melhor. Grande número de bons conhecimentos te esperam neste gênero de vida: o amor e a prática das virtudes, o esquecimento das paixões, o saber viver e morrer, enfim, uma grande tranquilidade. (3) A condição de todos os ocupados é miserável, contudo a mais miserável é a daqueles que nem se molestam com suas próprias ocupações, que regulam seu sono pelo alheio, que caminham segundo as passadas de outro e que estão sob ordens, mesmo nas mais livres das coisas: amar e odiar. Estes, se quiserem saber quão breve é a vida, que considerem quão insignificante é a parte que lhes cabe.

20-1: Portanto, quando vires frequentemente uma toga pretexta ou um nome célebre no fórum, não o invejes: essas coisas são adquiridas ao custo da vida. Para ligar seu nome a um único ano, consumirão todos os seus anos. A uns, a vida abandonou logo nas primeiras etapas, antes que tivessem atingido as alturas ambicionadas; a outros, após terem galgado o cume das honras através de mil desonestidades, sobrevém o triste pensamento: “ter trabalhado tanto por uma inscrição num túmulo!” Enquanto estavam dispostos para novas esperanças como na mocidade, a extrema velhice de alguns, já incapaz, frustrou-lhes os grandes e insaciáveis (2) esforços. Vergonha daquele que, já de idade avançada e querendo obter aplausos de um público ignorante, num processo de litigantes desconhecidos, perde seu fôlego; desgraçado o que, esgotado mais por causa de sua vida do que por causa de seu trabalho, sucumbe em meio aos seus próprios deveres; desgraçado o que morre recebendo suas contas sob o riso do herdeiro longamente (3) deserdado. Não posso omitir um último exemplo que me ocorre: São Turanio foi um velho de comprovada diligência, que, depois de completar noventa anos, como fosse dispensado de seu cargo por César sem que tenha solicitado, ordenou que o colocassem em seu leito e que a família, que se reuniu em torno dele como se estivesse morto, o pranteasse. A casa lamentava o ócio de seu velho senhor, e a tristeza não terminou antes que o cargo (4) lhe fosse restituído. É tão bom assim, morrer ocupado? O mesmo estado de espírito manifesta-se em muitos, o desejo de trabalhar perdura mais que a capacidade, lutam contra a fraqueza do corpo e julgam penosa a velhice, por nenhuma outra razão senão porque ela os põe de lado. A lei não mobiliza um soldado nos seus cinquenta anos, nem convoca um senador nos sessenta; os homens obtêm com mais dificuldade folga de si (5) mesmos do que da lei. Entrementes, enquanto roubam e são roubados, enquanto um arrebata o repouso de outro, enquanto tornam-se mutuamente miseráveis, sua vida é sem proveito, sem prazeres, sem nenhum aperfeiçoamento intelectual. Ninguém tem a morte à vista, todos estendem suas esperanças ao longe, alguns chegam até mesmo a tomar disposições com relação a coisas que estão além de suas vidas: enormes túmulos, dedicatórias de serviços públicos, dádivas junto de suas piras funerárias e pomposas exéquias. Mas, por Hércules, seus funerais deveriam ser conduzidos à luz de tochas e círios, como se tivesse vivido pouquíssimo!

NOTAS

1) para Aristóteles, só a forma é boa, a corrupção do mundo adviria da presença da matéria. Os estoicos tomarão uma posição intermediária e acreditarão na benevolência da natureza.

2) Quando Sêneca se refere ao maior dos poetas, não se sabe se refere-se a Homero ou Virgílio.

3) Nunca é permitido às suas vítimas voltar a si-Os ocupados não tem tempo para refletir sobre si, daí o estranhamento de si mesmos. O homem, no entanto, pode ultrapassar sua condição meramente corporal e alcançar o conhecimento de si como alma e razão, integrando-se assim ao logos universal.

4) Augusto (63 a.C.-14 d.C.), primeiro imperador de Roma, foi grande patrono das letras e das artes.

5) Cícero (106-43 a.C.), o maior orador romano, outro exemplo de vida bem vivida para o romano médio da época de Sêneca.

6) Cícero era muito vaidoso, chegou a escrever um poema épico em louvor de seu próprio consulado.

7) Tribuno da plebe em 91 a.C., considerado um gênio da política, foi assassinado por suas reformas democráticas. Daí teve início a guerra social. (91-89 a.C.)

8) A toga pretexta, com uma faixa púrpura, era a vestimenta dos altos funcionários e dos generais.

9) Papírio Fabiano foi mestre de Sêneca e o que mais o influenciou.

10) Nos leilões e no tribunal dos centúnviros, a lança era colocada como símbolo do iustum dominium. A lança assim fixada indicava que o tribunal estava sob a autoridade do pretor.

11) Os bronzes coríntios eram muito cobiçados e colecionados por muitos em todo o império.

12) Peças naturalistas sobre os temas da vida comum. Algumas eram pornográficas.

13) Para Sêneca, o único conhecimento válido é o da filosofia, cuja finalidade é o aperfeiçoamento moral do homem.

14) Pompeu, O Grande, iria ser morto por um escravo ao desembarcar como fugitivo em Alexandria.

15) O estudo da filosofia, que abrange também a física e a teologia, pode levar o homem a ter acesso á própria eternidade.

16) Desde Platão, é comum a crítica dos filósofos às ficções dos poetas.

17) Lúcio Gaio Mário (157-86 a.C.), general romano, foi o vencedor da Jugurta.

18) Cincinato (século 4 a.C.) foi chamado do campo para ser ditador e salvar o exército romano. Cumprida a tarefa, voltou ao campo. Foi tido como modelo de virtude cívica pelos romanos.

19) Cipião Africano Maior (236-183 a.C.), comandante do exército romano na Segunda Guerra Púnica, terminou a guerra com a vitória de Zama.

20) O título de Rex era abominado pelos romanos, que nunca esqueciam as atitudes imorais e irresponsáveis de seus últimos reis, os Tarquínios. Otávio, ao se tornar imperador, inventou um título novo e muito mais importante: o de Augusto.

21) O estudo da filosofia, para os estoicos, abrange a Física, a Lógica e a Ética.”

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Em “Laus Stultitiae”, escrito em 1509, quem fala é a Loucura. Sempre vista apenas como uma doença ou como uma característica negativa e indesejada, aqui ela é personificada na forma mais encantadora. E, já que ninguém mais lhe dá crédito por tudo o que faz pela humanidade, ela tece elogios a si mesma. O que seria da raça dos homens se a insanidade não os impulsionasse na direção do casamento? Seria suportável a vida, com suas desilusões e desventuras, se a Loucura não suprisse as pessoas de um ímpeto vital irracional e incoerente? Não é mérito da Loucura haver no mundo laços de amizade que nos liguem a seres perfeitamente imperfeitos e defeituosos? Nas entrelinhas de “Elogio da Loucura”, o humanista Erasmo de Rotterdam (1469-1536) criticou todos os racionalistas e escolásticos ortodoxos que punham o ser humano ao serviço da fé ou da razão (e não o contrário), e estende um véu de compaixão por sobre a natureza humana.

O principal mal dos seus dias, segundo o autor, é o formalismo, um respeito por tradições sem consideração pelo verdadeiro ensinamento de Cristo. O remédio é que cada humano se pergunte a cada ponto “Qual a coisa essencial?”, fazendo-o sem receio. Formas podem esconder ou sufocar o espírito. Na sua examinação dos perigos do formalismo, criticou a vida monástica, a veneração dos santos, a razão das guerras, a mentalidade de classe e as fraquezas das sociedades. Como resultado das suas atividades reformadoras, Erasmo viu-se em conflito com as grandes posições. Os seus últimos anos de vida foram ofuscados por controvérsias amargas com pessoas para quem ele seria normalmente simpático. Em seus últimos escritos, ele colocou ênfase na importância de uma boa vida como condição essencial para uma morte feliz. Após a sua morte, e como reação aos seus escritos, a Igreja Católica Romana os colocou no Index dos livros proibidos.

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(...) “Das divindades dos prazeres já falamos bastante. Fazeis questão, agora, de conhecer a vida dos deuses tétricos e melancólicos? Interrogai Homero e os outros poetas, e eles poderão dizer-vos, a esse respeito, belíssimas coisas, fazendo-vos ver que os deuses são pelo menos tão loucos quanto os mortais. Júpiter deixa os seus raios, abandona as rédeas do universo, para entregar-se aos amores, o que para vós não constitui novidade. Esquece o seu sexo a altiva e inacessível Diana, para consagrar-se inteiramente à caça, o que não impede que se apaixone loucamente por seu ardoroso Endimião, a ponto de se dar, muitas vezes, ao incômodo de descer do céu, em forma de Lua, para cumulá-lo com seus favores. Mas, prefiro que as suas indecências sejam reprovadas por Momo , cujas censuras são eles os únicos a ouvir. Foi, pois, bem feito que os deuses, enraivecidos, o precipitassem à terra juntamente com Ates , porque, importuno com a sua sabedoria, ele perturbava sua felicidade. E, longe de encontrar acolhimento nos paços monárquicos, não acha uma alma que lhe preste hospitalidade em seu exílio, ao passo que a Adulação, minha companheira, ocupa sempre o primeiro lugar, essa mesma Adulação que sempre esteve de acordo com Momo como o lobo com o cordeiro.

E assim, livres da importuna censura de Momo, os deuses se entregaram com maior liberdade e alegria a toda sorte de prazeres. Com efeito, quantas palavras chistosas não pronuncia aquele Priapo de uma figa? Quanto não faz rir Mercúrio com suas ladroeiras e seus feitiços? Que não faz Vulcano nos banquetes dos deuses? Põe-se a correr para chamar a atenção sobre o seu andar claudicante, brinca, diz asneiras, em suma, faz tudo para tornar o banquete alegre. E que direi daquele velho imbecil que se apaixonou por Sinele e gosta de dançar com Polifemo e com as ninfas? E daqueles sátiros semi-bodes que em suas danças praticam cem atos imodestíssimos? Pã provoca o riso dos deuses com suas insípidas cantilenas: eles o escutam com grande atenção e preferem cem vezes a sua música à das musas, principalmente quando os vapores do néctar principiam a perturbar-lhes a cabeça. Mas, porque não hei de recordar as extravagâncias que fazem as divindades depois dos banquetes, sobretudo depois de terem bebido muito? Asseguro-vos, por Deus, que, embora eu seja a Loucura e esteja, por conseguinte, habituada a toda espécie de extravagâncias, muitas vezes não consigo conter o riso. Mas, é melhor que me cale, porque, se algum deus desconfiado e prevenido me escutasse, também eu poderia ter a mesma sorte de Momo. Mas, já é tempo de que, seguindo o exemplo de Homero, passemos, alternadamente, dos habitantes do céu aos da terra, onde nada se descobre de feliz e de alegre que não seja obra minha.

Primeiro, vós bem vedes com que providência a natureza, esta mãe produtora do gênero humano, dispôs que em coisa alguma faltasse o condimento da loucura. Segundo a definição dos estoicos o sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. Eis porque Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar muito mais a dose das paixões que a da razão, de forma que a diferença entre ambas é pelo menos de um para vinte e quatro. Além disso, relegou a razão para um estreito cantinho da cabeça, deixando todo o resto do corpo presa das desordens e da confusão. Depois, ainda não satisfeito com isso, uniu Júpiter à razão, que está sozinha, duas fortíssimas paixões, que são como dois impetuosíssimos tiranos: uma é a Cólera, que domina o coração, centro das vísceras e fonte da vida; a outra é a Concupiscência, que estende o seu império desde a mais tenra juventude até à idade mais madura. Quanto ao que pode a razão contra esses dois tiranos, demonstra-o bem a conduta normal dos homens. Prescreve os deveres da honestidade, grita contra os vícios a ponto de ficar rouca, e é tudo o que pode fazer; mas os vícios riem-se de sua rainha, gritam ainda mais forte e mais imperiosamente do que ela, até que a pobre soberana, não tendo mais fôlego, é constrangida a ceder e a concordar com os seus rivais.

De resto, tendo o homem nascido para o manejo e a administração dos negócios, era justo aumentar um pouco, para esse fim, a sua pequeníssima dose de razão, mas, querendo Júpiter prevenir melhor esse inconveniente, achou de me consultar a respeito, como, aliás, costuma fazer quanto ao resto.”
(...)

“Todas as coisas humanas têm dois aspectos, à maneira dos Silenos de Alcibíades, que tinham duas caras completamente opostas. Por isso é que, muitas vezes, o que à primeira vista parece ser a morte, na realidade, observado com atenção, é a vida. E assim, muitas vezes, o que parece ser a vida é a morte; o que parece belo é disforme; o que parece rico é pobre; o que parece infame é glorioso; o que parece douto é ignorante; o que parece robusto é fraco; o que parece nobre é ignóbil; o que parece alegre é triste; o que parece favorável é contrário; o que parece amigo é inimigo; o que parece salutar é nocivo; em suma, virado o Sileno, logo muda a cena. Estarei falando muito filosoficamente? Pois vou explicar-me com maior clareza.

Todos vós estais convencidos, por exemplo, de que um rei, além de muito rico, é o senhor dos seus súditos. Mas, se ele tiver no peito um coração brutal, se for insaciável na sua cobiça, se nunca se mostrar satisfeito com o que possui, não concordareis comigo que é miserabilíssimo? Se ele se deixar transportar por seus vícios e por suas paixões, não se tornará um dos escravos mais vis? O mesmo se poderia dizer de tudo mais. Basta, porém, esse exemplo. — E com que fim — podeis perguntar-me — nos dizeis tudo isso? — Um pouco de paciência, e vereis aonde quero chegar. Se alguém se aproximasse de um cômico mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? No entanto, os cômicos mascarados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à-toa. Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam justamente com a troca das roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação: que é, afinal, a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge, em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de um aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma.”
(...)

“Antes de mais nada, sustento que, em geral, as paixões são reguladas pela Loucura. Com efeito, que é que distingue o sábio do louco? Não será, talvez, o fato do louco se guiar em tudo pelas paixões, e o sábio pelo raciocínio? É por isso que os estóicos afastam do sábio toda e qualquer perturbação de ânimo, considerando-a um verdadeiro mal. Aliás, se é que nos merecem fé os peripatéticos, as paixões fazem as vezes de pedagogos aos que se encaminham para o porto da sabedoria: são como estímulos e incentivos para a satisfação dos deveres da vida e para uma conduta virtuosa. É verdade que Sêneca, duas vezes estóico, isenta o seu sábio de toda sorte de paixões. Oh! bela obra-prima! Decerto, esse sábio não é mais homem, mas uma espécie de deus que nunca existiu. Falemos mais claramente: o que ele fez foi uma fria estátua de mármore, privada de todo senso humano.

Que os senhores estóicos apreciem e amem à vontade o seu sábio e vão passar a vida na cidade de Platão, ou, se acharem melhor, na região das idéias, ou nos jardins de Tântalo. Que espécie de homem é um estóico? Quem poderá deixar de evitá-lo como a um monstro, de temê-lo como um fantasma? Eis o retrato fiel de um estóico: surdo à voz dos sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a piedade não impressionam absolutamente o seu coração duro como o diamante; nada lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de lince; tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a felicidade e se julga o único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só ele é tudo, e o mais interessante é que é o único a se julgar assim. Amigos. É a sua última preocupação, pois não possui nenhum. Sem nenhum escrúpulo, chega a insultar os deuses e a condenar como verdadeira loucura tudo o que se faz no mundo, ridicularizando todas as coisas.

Vede o belo quadro desse animal que nos apresentam como o modelo acabado da sabedoria. Dizei-me, por favor: se a questão pudesse ser posta a votos, que cidade desejaria semelhante magistrado? Que exército reclamaria um tal general? Quem o convidaria à sua mesa? Estou igualmente convencido de que não acharia, sequer, uma mulher ou servo que quisessem e pudessem suportá-lo. E quem, ao contrário, não preferiria um homem qualquer, tirado da massa dos homens estúpidos; que, embora estúpido, soubesse mandar ou obedecer aos estúpidos, fazendo-se amar por todos; que, sobretudo, fosse complacente para com a mulher, bom para os amigos, alegre na mesa, sociável com todos os que convivesse; que, finalmente, não se achasse estranho a tudo o que é próprio da humanidade? Mas, para falar a verdade, chego a ter nojo de falar dessa espécie de sábios. Passo, por isso, a tratar dos outros bens da vida.”
(...)

“A principal ocupação dos mundanos é acumular sempre riquezas e contentar em tudo e por tudo o próprio corpo, pouco ou nada se importando com a alma, cuja existência, por ser ela invisível, muitos chegam mesmo a pôr em dúvida. Já as pessoas inflamadas pelo fogo da religião seguem um caminho totalmente oposto e depositam toda a sua confiança em Deus, que é o mais simples de todos os seres: depois dele e dependendo dele, pensam na alma, como sendo a coisa que mais próxima está às divindades. É assim que não pensam no corpo e não só desprezam os bens da fortuna como até os recusam. E quando, por dever, são obrigados, como pais de família, a pensar nos interesses temporais, por aí enveredam contra a vontade e experimentam um vivo pesar, porque têm como se não tivessem e possuem como se não possuíssem.

Existem ainda muitos outros graus de diferença entre os que se ocupam somente com o corpo e os que se entregam inteiramente à pia cultivação da alma. Para melhor distinguirmos esses graus, estabeleçamos um princípio incontestável.

Embora todos os sentimentos da alma tenham uma correspondência necessária com o corpo, há contudo duas espécies: uns são materiais, como o tato, a audição, a vista, o olfato e o paladar; outros têm menor relação com os órgãos, como sejam a memória, o intelecto e a vontade. Disso resulta que a alma tem maior ou menor forca à proporção que se aplica mais ou menos a esses diversos sentimentos. Raciocinemos, agora, sobre essa suposição. Assim como os que se abandonam totalmente à piedade se tornam o quanto podem superiores aos sentidos do corpo, mortificando-o a tal ponto que acabam perdendo toda sensibilidade, — como São Bernardo, por exemplo, que, segundo a lenda, bebia óleo por vinho sem perceber, — assim também os sensuais têm um grande vigor de ânimo pelos sentidos do corpo e uma fraqueza extrema pelos da alma. Além disso, há algumas paixões que afetam o corpo mais de perto, como o amor, a fome, a sede, o sono, a cólera, a soberbia, a inveja, contra as quais movem os verdadeiros devotos, se é que os há, uma perpétua guerra, ao passo que os adeptos da natureza acham que não podem viver sem essas coisas. Existem ainda outras que têm um lugar intermédio e são consideradas naturais, como sejam: amar a pátria, os parentes, os filhos diletos, os vizinhos, os amigos. Quase todos os homens possuem algo dessas paixões, mas as pessoas pias fazem tudo para extirpá-las do coração ou ao menos espiritualizá-las. Um filho, por exemplo, ama seu pai: julgais que ele honre a paternidade e ame de fato aquele de quem recebeu a vida? — Ora essa! Que foi que me deu meu pai, — diz o devoto, — a não ser esse corpo miserável, que é o meu pior inimigo? Aliás, também isso eu o devo a Deus, único e verdadeiro autor do meu ser. Amo meu pai como um homem em quem resplende a imagem daquela suprema inteligência que é o bem supremo e fora da qual nada existe de amável nem de desejável. — É também com essa regra que as pessoas de mortificação misturam todos os deveres da vida, de modo que, quando não desprezam em geral todas as coisas visíveis, pelo menos as põem infinitivamente abaixo das invisíveis.” (...)

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Em o “Gene Egoísta”, publicado em 1976, Richard Dawkins condensou um enorme corpo teórico para compreender como as espécies surgem e se diversificam, como indivíduos se relacionam e colaboram entre si - e a ir além disso. Dawkins inovou de muitas maneiras. Introduziu uma linguagem informal e metafórica numa área dominada por reflexões densas e fórmulas matemáticas. Subverteu a percepção intuitiva da importância dos organismos e dos grupos: o gene é quem comanda, quem busca perpetuar-se. Os organismos são máquinas de sobrevivência construídas pelos genes, num processo competitivo de construir a máquina mais eficaz. E a influência dos genes não para aí. Organismos interagem entre si e com o mundo inanimado, e assim alteram seu ambiente e promovem a propagação de genes presentes em outros corpos.

Um dos livros mais aclamados da história da divulgação científica, ele não só apresenta a biologia evolutiva de forma acessível, mas acrescenta uma interpretação metafórica que inspirou gerações de biólogos e simpatizantes: somos máquinas de sobrevivência a serviço dos genes. O mundo do gene egoísta é um mundo de competição selvagem e exploração impiedosa. Mas que dizer então dos atos de aparente altruísmo que encontramos na natureza - as abelhas que cometem suicídio para proteger a colmeia ou os pássaros que arriscam as vidas para avisar os bandos da aproximação de um falcão? Será que contradizem a lei fundamental do egoísmo dos genes? De forma alguma: Dawkins demonstra que o gene egoísta é também um gene subtil. E acalenta a esperança de que a nossa espécie - e apenas ela - consiga rebelar-se contra os desígnios do gene egoísta. Este livro é uma chamada às armas. É um manual e um manifesto, e agarra o leitor como um thriller. Este livro pode - e deve - ser lido. Descreve com grande talento o novo rosto da teoria da evolução. Desde a sua publicação, foi traduzido para mais de 25 idiomas e sucesso de vendas pelo mundo todo. Um livro atual, que continuará a ser referência obrigatória para quem se interessa pela evolução da vida. Recomendo! :vinho:

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“A vida inteligente em um planeta torna-se amadurecida quando pela primeira vez compreende a razão da sua própria existência. Se criaturas superiores provindas do espaço algum dia visitarem a Terra, a primeira pergunta que farão, a fim de avaliar o nível de nossa civilização será: "Eles já descobriram a evolução?" Organismos vivos haviam existido sobre a Terra, sem nunca saberem porque, por mais de três bilhões de anos, antes que a verdade finalmente ocorresse a um deles. Seu nome era Charles Darwin. Para ser justo, outros tiveram intuições da verdade, mas foi Darwin quem pela primeira vez montou uma explicação coerente e convincente de por que nós existimos. Darwin nos tornou possível dar uma resposta sensata à criança curiosa cuja pergunta serve de título a este capítulo. Não mais temos que recorrer à superstição quando defrontados com os problemas profundos: há um sentido para a vida? Para que existimos? O que é o homem?” (...)

“A palavra "egoísta" talvez pareça muito branda para expressar casos extremos tais como canibalismo, embora estes encaixem-se bem em nossa definição. Talvez possamos ter simpatia mais diretamente para com o comportamento covarde descrito dos pinguins imperiais da Antártica. Eles têm sido vistos em pé à beira d'água, hesitando antes de mergulhar, devido ao perigo de serem comidos por focas. Se apenas um deles mergulhasse, os demais saberiam se havia uma foca ou não. Naturalmente nenhum deles quer ser a cobaia, de modo que eles esperam e algumas vezes até mesmo tentam se empurrar para a água. Mais comumente, o comportamento egoísta consiste simplesmente em recusar a compartilhar algum recurso valioso, como alimento, território ou parceiros sexuais. Agora, alguns exemplos de comportamento aparentemente altruísta.

O comportamento de aferroar das abelhas operárias é uma defesa muito eficaz contra ladrões de mel. Mas, as abelhas que aferroam são combatentes kamikazes. No ato de picar, órgãos internos vitais são geralmente arrancados do corpo e a abelha morre logo em seguida. Sua missão suicida talvez tenha salvo os estoques vitais de alimento da colônia, mas ela própria não pode usufruir os benefícios. Pela nossa definição este é um ato de comportamento altruísta. Lembre-se que não estamos falando de motivos conscientes. Eles podem ou não estar presentes, tanto aqui como nos exemplos de egoísmo, mas são irrelevantes para nossa definição.

Sacrificar a vida pelos amigos é obviamente altruísta, mas correr um pequeno risco por eles também o é. Muitos pássaros pequenos, quando veem um predador voando, como um gavião, dão um "grito de alarme" característico, em consequência do qual todo o bando se põe em fuga. Há evidência indireta de que o pássaro que dá o grito de alarme se expõe particularmente ao perigo, pois atrai a atenção do predador especialmente para si. Este é apenas um leve risco adicional, mas parece, no entanto, pelo menos à primeira vista, corresponder a um ato altruísta pela nossa definição.”
(...)

“A confusão na ética humana com relação ao nível no qual o altruísmo é desejável – família, nação, raça, espécie, ou todas as coisas vivas – está refletida numa confusão paralela na Biologia com relação ao nível no qual o altruísmo deve ser esperado segundo a teoria da evolução. Até mesmo o adepto da seleção de grupo não se admiraria de encontrar membros de grupos rivais sendo desagradáveis uns com os outros: desta forma, como membros de um sindicato ou soldados, eles estão favorecendo seu próprio grupo na luta por recursos limitados. Mas, então, vale à pena perguntar como o adepto da seleção de grupo decide qual nível é o importante. Se a seleção se dá entre grupos dentro de uma espécie e entre espécies, por que não deveria ela se dar também entre agrupamentos maiores? As espécies estão reunidas em gêneros, os gêneros em ordens e as ordens em classes. Os leões e os antílopes são ambos membros da classe Mammalia, assim como nós. Não deveríamos então esperar que leões se abstivessem de matar antílopes, "para o bem dos mamíferos"? Certamente eles deveriam, em vez disto, caçar pássaros ou répteis, a fim de evitar a extinção da classe. Mas, então, o que se diria da necessidade de perpetuar todo o filo dos vertebrados?

É fácil para mim argumentar pelo reductio ad absurdum e indicar as dificuldades da teoria de seleção de grupo, mas a existência aparente do altruísmo individual ainda tem que ser explicada. Ardrey chega a dizer que a seleção de grupo é a única explicação possível para um comportamento tal como o de "saltitamento" das gazelas Thomson. Este salto vigoroso e conspícuo em frente de um predador é análogo ao grito de alarme das aves no sentido de que ele parece avisar os companheiros do perigo ao mesmo tempo que aparentemente chama a atenção do predador para o próprio animal que salta. Temos a responsabilidade de explicar este comportamento das gazelas e todos os fenômenos semelhantes. Considerarei isto em capítulos posteriores.

Antes disto devo defender minha crença de que a melhor maneira de se encarar a evolução é em termos de seleção ocorrendo no nível mais baixo de todos. Nesta crença fui fortemente influenciado pelo grande livro de G. C. Williams, Adaptation and Natural Selection. A idéia central que usarei foi pressagiada por A. Weismann em época anterior à descoberta do gene, no fim do século passado – sua doutrina da "continuidade do plasma germinativo". Sustentarei que a unidade fundamental da seleção e, portanto, do interesse próprio, não é a espécie, nem o grupo, nem mesmo, a rigor, o indivíduo – é o gene, a unidade da hereditariedade. Para alguns biologistas isto talvez pareça, inicialmente, uma posição exagerada. Espero que quando eles virem ao que me refiro concordarão que a posição, é, no fundo, ortodoxa, embora expressada de forma não habitual. O argumento leva tempo para ser desenvolvido e devemos começar pelo começo, com a origem da própria vida.”
(...)​

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O “Vazio da Máquina” investiga alguns dos tópicos mais incômodos trazidos à luz pelo vazio da existência. Este livro apresenta pensamentos e reflexões lúcidas do mundo real em que estamos inseridos e condenados a viver. Sem rodeios, o autor nos apresenta uma forma sensata de encarar o mundo, sem ilusões. Quando fazemos das ilusões e fantasias verdades em um mundo real, insultamos nossa integridade intelectual. A exploração do subterrâneo, do tabu, da humanidade que preferimos esconder de nós mesmos. O nada, o absurdo, a solidão, o sofrimento, o suicídio e a hipocrisia são alguns dos assuntos principais abordados ao longo da obra.Longe de ser um ataque direto às crenças religiosas, à metafísica, ao sobrenatural, ao misticismo inútil, às mandingas, ele representa um resgate do pensamento independente, totalmente livre de preconceitos e do respeito às tradições e à autoridade, falsos alicerces em que se fundamentam as religiões. Abordando temas reais de nossas vidas, o livro se constitui em uma coletânea de ensaios escritos de forma inteligente, muitas vezes extremamente irônica, passeando pela Ciência, e claro, olhando sobre os ombros de grandes filósofos e pensadores. Sabemos até onde podemos chegar com nosso conhecimento moderno; resta finalmente empregá-lo. Leitura (e reflexão) NÃO recomendada... :ahh:

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“O nonsense essencial. Até onde sabemos, a essência de todas as coisas é a sua própria existência. O ser, em si mesmo, não carrega qualquer razão, valor ou significado incrustado em seu âmago – portanto, tampouco nossas vidas. Fora dela própria, a vida não pode ser reconhecida como algo importante ou tampouco necessário. Estarmos aqui é fato puramente contingente, de modo que, se não estivermos olhando pela perspectiva humana – ou seja, despejando nossos juízos na realidade, nada pode diferenciar uma pedra rolando montanha abaixo ou uma vida nascendo. Para o universo impessoal, externo a nós, à nossa realidade subjetiva, a vida não se distingue de um amontoado de átomos sem significado. Estarmos aqui, vivos e pensando, é algo totalmente vazio de qualquer significância objetiva. À parte isso, podemos fazer o que quisermos, decorar a existência com a roupagem que preferirmos. Podemos dizer que a vida é tudo; podemos dizer que a vida é nada; que é uma bênção com espinhos ou sem espinhos, que é uma maldição completa ou incompleta; podemos inventar regras para definir e julgar os seres; podemos importunar todos com teorias sobre como devemos nos comportar e no que devemos acreditar etc.; podemos gritar nossas opiniões ou permanecer calados. Nada disso despertará o interesse dos átomos; o mundo não procura nos imitar. Como humanos, o nonsense essencial consiste em acreditarmos naquilo que inventamos e fazer de conta que a realidade estava de férias quando decretamos a verdade absoluta.” (...)

“Alienação. Isolados, não sabemos que fim dar às nossas vidas, pois nunca as demos para nós mesmos. Durante toda a vida, nós nos ignoramos, insistentemente. Agora, sozinhos, não sabemos sequer quem somos, não reconhecemos em nós aquilo que acreditamos ser. Nossa alienação é tamanha que, condenados à solidão, seríamos obrigados a nos tornar outra pessoa. Entristece-nos perceber que esse indivíduo anônimo dentro de nós mesmos é aquilo que realmente somos; quando dizemos que somos atores, não se trata apenas de uma figura de linguagem.” (...)

“Anonimato. Aquilo que faz de nós o que somos, e nunca outra coisa, é nossa imaginação; por mera vaidade chamamo-nos de homens, não de matéria. Se pensamos que ter consciência é algo que nos livra de quaisquer responsabilidades para com a física, a ciência chora por nós. Mesmo com o peito coberto de condecorações distintivas, somos todos os mesmos “Severinos”, todos “Zés-ninguém”, todos acasos biológicos que, ao nascer, recebem uma missão, um prazo de validade, um número de série e uma imbecilidade suficiente para acreditar no contrário.” (...)

“Infelicidade. A felicidade de nossas vidas é sustentada por uma ótica constantemente falsa. Sonhamos com o futuro e dizemos: ah!, como serei feliz...; olhamos para trás e suspiramos: ah!, como fui feliz...; agora, lamentamos: ah!, como sou desgraçado... No presente, somos seres infelizes rodeados de felicidades distantes, mas perto das quais o sofrimento atual parece desprezível. O presente é uma ilha de infelicidade rodeada por um mar de alegria. O fato, entretanto, é que nunca mergulharemos nesse mar, pois ele é uma ilusão que inventamos para tentar justificar nossa miséria. Mesmo assim, nunca nos deixaremos desiludir. Somos infelizes absolutamente convictos de que a felicidade existe — esteja ela onde estiver, está à nossa espera, pois sua mão nos foi prometida durante a infância. Não importa que nesse particular nossas vidas resumam-se uma série de decepções: nunca admitimos que tudo é areia, nunca admitimos que fomos enganados. Podemos estar certos de que, se a felicidade fosse uma pessoa, ela estaria presa, mas isso não nos prova nada. A felicidade nos sorri como uma miragem, e nós acreditamos que dessa vez pode ser real: acreditemos naquela que sempre nos tapeou!” (...)

“Solidão. Quando dizemos que não há meios de escapar da solidão, não queremos dizer que isso é difícil, mas que é completamente impossível. O que as demais pessoas conhecem a nosso respeito são apenas nossas bocas movendo-se diante delas, e as ideias que constroem a partir disso; em suas mentes, isso resulta numa visão de nós mesmos tão deturpada quanto a visão que temos delas, que nos parecem existir apenas do lado de fora; e não nos enganemos, nós passamos essa mesma impressão. Contudo, assim como elas, nós existimos primariamente num nível privado que é inacessível, significando que todo e qualquer contato sempre acontecerá de forma indireta. Isso nos permite compreender que não há situação em que seria possível escapar da solidão. Apenas podemos supor que um contato direto seria agradável, mas isso é algo que imaginamos pelos verbos que vemos sair de outras bocas, que se assemelham ao que nós próprios murmuraríamos. Talvez fosse agradável ter um contato direto com a consciência de outra pessoa — e não apenas com seu vocabulário —, mas isso é impossível. Em relação ao íntimo uns dos outros, somos todos estrangeiros vivendo seu exílio pessoal. Cada qual está trancado em si próprio, e só conhecemos o que os demais dizem de si, nunca eles próprios; e nós também nunca seremos conhecidos, apenas ouvidos sobre aquilo que dizemos de nós mesmos. Em suma, a solidão é a consciência de que vivemos sozinhos em nossos corpos, e só podemos entrar em contato com outros indivíduos por meio de gesticulações que nossos corpos executam — exatamente como se cada qual morasse sozinho em uma casa, e só pudesse entrar em contato com outros indivíduos por meio de cartas, sem jamais conhecer o interior de outras residências.” (...)

“Leitura. Ler, em si mesmo, é um esforço penoso o bastante para que nos sintamos justificados em jogar ao lixo qualquer livro escrito com o objetivo de fazer com que seus leitores desperdicem suas vidas decifrando banalidades. Se considerarmos nosso tempo e esforço como algo minimamente valioso, concluiremos que a maioria dos livros simplesmente não merece ser lida. Ler livros que nos desagradam é tão tolo quanto planejar um fim de semana junto a uma pessoa com a qual não temos a menor afinidade; não nos acrescentará nada, ficaremos entediados e isso será nossa culpa, pois, diante de tantos livros bons, escolhemos os ruins apenas para provar que conseguimos engolir o lixo que está na moda. Faremos muito melhor em ler e reler os clássicos que em vagar pelo deserto de idéias ocas e autores hipócritas que, não tendo nenhuma coisa séria para dizer, escrevem livros como que para brincar com nossas caras.” (...)

“Existência. Quando investigamos as grandes questões da existência, nos lançamos numa espécie de aventura grandiosa e sem sentido claro, como escalar um Everest desconhecido. Testamos nossos limites apenas para nos tornarmos mais lúcidos. Talvez aprendamos isto ou aquilo no processo, mas apenas como uma consequência indireta. Não descobriremos fatos específicos sobre certo assunto, mas estaremos expandindo os horizontes de nossa compreensão global da existência, que se estende a todos os assuntos. Conquistamos uma ótica mais completa e coesa da realidade, cujo valor só pode ser apreendido em vista do conjunto total de nossos conhecimentos sobre o mundo. Com uma perspectiva panorâmica e ampla, tudo passa a fazer mais sentido; adivinhamos relações obscuras entre fatos distantes e aparentemente desconexos; integramos melhor nosso entendimento a respeito de fatos particulares; os organizamos com maior precisão e critérios mais esclarecidos. É um exercício que nos torna mais íntimos de nossos conhecimentos e, portanto, mais aptos no seu emprego. No fim, não há mudanças bruscas nem recompensas grandiosas; o mundo apenas torna-se sutilmente mais claro, mais óbvio.” (...)

“Que é realidade? Qualquer noção de realidade não seria, inescapavelmente, relativa, até mesmo arbitrária? De fato. Mas não pressuponhamos consensos inexistentes; não tentemos fazer vista grossa às batalhas filosóficas que cruzaram os séculos a respeito de tal assunto. Todavia, havemos de partir de algo. Esta insegurança diante da dispersão é inerente a toda investida ao desconhecido; a incerteza de cada passo no escuro deve revestir-se de cautela e circunspeção. Pois é certo que se buscamos esclarecimento, isso exige de nós alguma audácia – não na posição de quem compreende, mas na de quem quer compreender e, para isso, se lança, sóbrio, ao âmago do absurdo de nossa existência. O que provier desta jornada indicará o valor desse nossos pressupostos, sobre os quais caminhamos, titubeantes.” (...)

“Morte. Sabemos que a vida é uma brincadeira efêmera, e apenas por isso somos capazes de suportá-la sem perder o senso de humor; sem a ideia da inevitabilidade da morte, já teríamos enlouquecido diante da perspectiva aterrorizante de uma existência eterna. É um consolo saber que nossas vidas terão um fim; cada dia é uma contagem regressiva para o encerramento de uma corrida da qual nunca quisemos participar.” (...)​

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Em “Syllogismes de l'amertume”, o pensador e escritor romeno Emil Michel Cioran produziu um conjunto de aforismos sobre diversos temas como a existência, angústia, religião, amor, História e, claro, a asfixia que a vida cotidiana imprime ao ser humano, este eterno atormentado. “Silogismos da Amargura” não obteve grande sucesso quando foi lançado originalmente, mas com o passar do tempo foi sendo cada vez mais apreciado, por sucessivas gerações de jovens que o elegeram como uma espécie de guia para quem acredita que a vida é uma tragicomédia que se toca por distração ou vício. A obra apoia-se sobre dois temas básicos: a noção do mal, teológica, e a decadência da civilização ocidental, histórica. E com suas brilhantes alfinetadas na poesia, no amor e na intelectualidade justifica amplamente a atração permanente que exerce. Como um desbravador da agonia existencial, Cioran abordou o sofrimento e a angústia, explorou abismos, embrenhou-se nas trevas do Ser para vislumbrar a iluminação que só surge na ausência total de claridades inebriantes. Para aqueles que estão de barrigas cheias e com a vida ganha, chafurdados no comodismo e nas “alegrias da vida” (e completamente ignorantes de seus prazos de validade biológicos e acasos trágicos, do abismo infinito e ilimitado ao qual todos estamos por um breve instante, nem preciso dizer, passem longe...) :haha3:

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“Dever da lucidez: alcançar um desespero correto, uma ferocidade apolínea.”

“A Angústia já era um produto comum na época das cavernas. Imaginem o sorriso do homem de Neanderthal se tivesse previsto que os filósofos chegariam um dia a reclamar a sua paternidade.”

“Na antiguidade, o filósofo que não escrevia mas pensava, não se expunha ao desprezo; desde que nos prostramos ante a eficácia, a obra se converteu no absoluto do vulgo; os que não produzem são considerados “fracassados”. No entanto, esses “fracassados” teriam sido os sábios de outros tempos; eles reabilitarão a nossa época por não haver deixado traços nela.”

“Quando se é jovem, pratica-se a filosofia menos para buscar nela uma visão que um estimulante; perseguem-se as ideias, adivinha-se o delírio que as produziu, sonha-se em imitá-lo e exagerá-lo. A adolescência se compraz no malabarismo das alturas; em um pensador ama o saltimbanco; em Nietzsche amávamos Zaratustra, suas poses, suas palhaçadas místicas, verdadeira feira de cumes...

Sua idolatria da força é menos um sinal de esnobismo evolucionista que uma tensão interior projetada para fora, uma embriaguez que interpreta e aceita o devir. Disso tinha que resultar uma imagem falsa da vida e da história. Mas era necessário passar por aí, pela orgia filosófica, pelo culto da vitalidade. Os que se negaram a isso jamais conhecerão suas conseqüências, o reverso e as caretas desse culto; nunca compreenderão as raízes da decepção.

Como Nietzsche, acreditávamos na perenidade de nossos transes; graças à maturidade de nosso cinismo, fomos ainda mais longe que ele. A ideia do super-homem nos parece, hoje, uma mera elucubração; naquela época nos parecia tão exata como um dado experimental. Assim se eclipsou o ídolo de nossa juventude. Mas qual deles — se fossem vários — permanece ainda? É o perito em decadências, o psicólogo agressivo, não somente observador como os moralistas, que escruta como inimigo e se cria inimigos; mas seus inimigos ele os extrai de si mesmo, como os vícios que denuncia. Combate furiosamente os fracos?, pratica a introspecção; e quando ataca a decadência, descreve seu próprio estado. Todo seu ódio se dirige indiretamente contra si mesmo. Proclama suas fraquezas e as erige em ideal; se se detesta, o cristianismo ou o socialismo sofrem as consequências. Seu diagnóstico do niilismo é irrefutável: porque ele mesmo é niilista e o confessa. Panfletário apaixonado por seus adversários, não teria conseguido suportar-se se não tivesse combatido contra si mesmo, se não tivesse colocado suas misérias em outro lugar, nos outros: vingou-se neles do que ele era. Tendo praticado a psicologia como herói, propõe aos apaixonados pelo Inextricável uma diversidade de impasses. Medimos sua fecundidade pelas possibilidades que nos oferece de renegá-lo continuamente sem esgotá-lo. Espírito nômade, é um especialista em variar seus desequilíbrios. Sustentou sempre o pró e o contra de tudo: é o procedimento dos que se dedicam à especulação por não haver podido escrever tragédias ou dispersar-se em múltiplos destinos. O certo é que Nietzsche, expondo suas histerias, nos desembaraçou do pudor das nossas; suas misérias nos foram salutares. Ele inaugurou a era dos “complexos”.”


“Na época em que, por inexperiência, se toma gosto pela filosofia, decidi, como todo mundo, fazer uma tese. Que tema escolher? Queria um ao mesmo tempo batido e insólito. Quando pensei havê-lo encontrado, corri para comunica-lo a meu orientador:

— O que o senhor acha de uma Teoria Geral das Lágrimas?
— É possível — me disse —, mas vai ser difícil encontrar bibliografia.
— Se é por isso, não há problema. A História inteira me respaldará com sua autoridade — respondi-lhe com um tom de impertinência e de triunfo. Mas como, impaciente, me olhava com desdém, decidi imediatamente matar o discípulo que havia em mim.”


“Mesmo que possa lutar contra um ataque de depressão, em nome de que vitalidade me obstinaria contra uma obsessão que me pertence, que me precede? Quando estou bem de saúde, escolho o caminho que me agrada; “doente”, já não sou eu quem decide: é meu mal. Para os obcecados não existe opção: sua obsessão já optou por eles. Uma pessoa se escolhe quando dispõe de virtudes indiferentes; mas a nitidez de um mal é superior à diversidade dos caminhos a escolher. Perguntar-se se se é livre ou não: futilidade aos olhos de um espírito a quem arrastam as calorias de seus delírios. Para ele, exaltar a liberdade é dar provas de uma saúde indecente. A liberdade? Sofisma dos saudáveis.”

“Objeção contra a ciência: este mundo não vale a pena ser conhecido.”

“O cético gostaria de sofrer, como o resto dos homens, pelas quimeras que fazem viver. Não conseguem: é um mártir do bom senso.”

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