(...) “A Filosofia não pode fazer outra coisa que não seja interpretar e explicar aquilo que é; ela deve dar à Razão o conhecimento claro e exato da essência do mundo, que sob forma concreta, ou seja, no domínio do sentimento, todos compreendem às mil maravilhas; mas tal interpretação quer ser apresentada sob todas as relações e sob todos os pontos de vista. Por consequência, tudo quanto procurei explicar nos três livros precedentes, com a generalidade própria da filosofia e com outras considerações, procurei agora demonstrar do mesmo modo nesta quarta parte, sob o ponto de vista da conduta humana: ver-se-á, como linhas acima dizia, que este lado do mundo, julgado não apenas subjetiva, mas também objetivamente, é de todos o mais importante.” (...) [“O mundo como Vontade e Representação”, Arthur Schopenhauer.]
(...) “A Vontade, considerada puramente em si mesma, é inconsciente; é uma simples tendência, cega e irresistível, a qual encontramos tanto na natureza do reino inorgânico e do vegetal e nas suas leis, como também na parte vegetativa da nossa vida: mas pelo acréscimo do mundo da representação que se desenvolveu pelo seu uso, ela adquire a consciência do seu querer e do objeto do seu querer; reconhece que aquilo que quer não é outra coisa senão o mundo e a vida como são; dizemos, por isso, que o mundo visível é a sua imagem ou a sua objetividade; e como o que a vontade quer é sempre a vida, pois que a vida para a representação é a manifestação da vontade, resulta que é indiferente e constitui puro pleonasmo se em vez de dizer simplesmente “a vontade”, dissermos “a vontade de viver”. Sendo a vontade a coisa em si, a substância, a essência do mundo; e a vida, o mundo visível, o fenômeno, não sendo mais que o espelho da vontade, segue-se daí que a vida acompanhará a vontade com a mesma inseparabilidade com que a sombra acompanha o corpo: onde houver vontade, haverá também vida, mundo. A vida está, portanto, assegurada ao querer-viver, e por quanto isto subsista em nós, não devemos preocupar-nos pela nossa existência nem mesmo diante da morte. Bem vemos o indivíduo nascer e morrer, mas o indivíduo é apenas um fenômeno; não existe senão pelo conhecimento submetido ao princípio de razão, que é o princípio de individuação: nesta ordem de ideias, certamente o indivíduo recebe a vida como um dom: oriundo do nada e despojado do seu dom pela morte, ao nada retorna. Mas para quem, como nós, contempla a vida do ponto de vista filosófico, isto é, das Ideias, nem a vontade ou a coisa em si de todos os fenômenos, nem o sujeito dos conhecimentos, espectador dos fenômenos, são de qualquer forma tocados pelo nascimento ou pela morte. Nascer e morrer são coisas que pertencem ao fenômeno da vontade, e aparecem nas criaturas individuais, manifestando fugitivamente e no tempo, aquilo que em si não conhece tempo e deve exatamente manifestar-se sob esta forma com o fim de poder objetivar a sua verdadeira natureza. Pela mesma razão, nascimento e morte pertencem à vida e equilibram-se mutuamente como condições recíprocas, ou melhor, como polos do fenômeno total. A mitologia hindu, entre todas a mais sábia, exprime este pensamento, dando por atributo a Çiva que simboliza a destruição ou a morte (como Brama, o deus ínfimo e pecador da Trimurti, simboliza a procriação, o nascimento e Vishnu simboliza a conservação), o colar dos mortos, juntamente com o Lingam, símbolo da geração, o qual conseguintemente aqui aparece para compensar a destruição; o que significa que nascimento e morte são pela sua essência correlativos que se neutralizam e se compensam a seu turno. Pelas mesmas razões, Gregos e Romanos cobriam seus preciosos sarcófagos, tais como podem ser vistos no dia de hoje, com ornamentos que representavam festas, danças, casamentos, caças, combates de feras e bacanais e colocavam deste modo em cena os fatos mais animados da vida expressos não unicamente sob a forma de divertimentos, mas também por meio de grupos voluptuosos e até mesmo de cópulas de sátiros com cabras. Tinha isto o fim evidente de subtrair ao indivíduo pranteado o pensamento da morte, para levá-lo à vida imortal da natureza, acentuada com energia, mostrando assim, embora estivessem muito longe de possuir a consciência abstrata deste fato, que toda a natureza não é mais que o fenômeno e a realização da vontade de viver. A forma de tal fenômeno é o tempo, o espaço e a causalidade, donde a individuação, que tem por consequência que o indivíduo deve nascer e morrer; mas a vontade de viver de que o indivíduo não constitui por assim dizer, mais que um exemplar ou uma parcela singular de manifestação, não é perturbada pela morte do ser individual, tanto quanto não o é o conjunto da natureza. Pois que não é pelo indivíduo, mas unicamente pela espécie que a natureza se interessa e é dela unicamente que estuda seriamente a conservação, circundando-a de grande luxo de precauções e por meio da superabundância ilimitada dos germes e do poder imenso do instinto de reprodução. O indivíduo, ao contrário, não tem valor algum para a natureza e nem pode tê-lo, desde que é apenas um ponto num tempo infinito e num espaço infinito que compreende um número infinito de indivíduos possíveis. A natureza está sempre pronta a abandonar o indivíduo que não somente está exposto a perecer de mil modos e pelas causas mais insignificantes, como também é, desde o princípio, destinado a uma perda certa, para a qual é arremessado por ela mesma, apenas haja satisfeito a missão que tem de conservar a espécie. Com isto a natureza exprime ingenuamente esta grande verdade, que são as Ideias e não os indivíduos que têm uma verdadeira realidade, isto é, são a objetividade perfeita da vontade. Ora bem, sendo o homem a própria natureza cônscia de si no mais alto grau, e sendo a natureza a vontade de viver objetivada, é natural e justo que o homem, desde que haja atingido e se mantenha neste ponto de vista, se console da morte dos seus e da sua própria, vislumbrando a vida imortal da natureza que não é mais que ele mesmo. Eis o que se deve compreender por Çiva com o Lingam e por aqueles antigos sarcófagos que com suas imagens da mais ardente vida, gritam ao espectador desolado: Natura non contristatur (a natureza ignora a aflição).” (...) “Mas nós, que nos mantemos exclusivamente no domínio da filosofia, devemos contentar-nos com a noção negativa e sentir-nos felizes por haver podido ir até ao limite extremo do conhecimento positivo. Chegamos a reconhecer que a essência do mundo é a vontade e que todos os fenômenos são apenas vontade objetiva. Estudamos a vontade em toda a sua série, desde o mais obscuro impulso inconsciente das forças naturais, até a conduta consciente do homem. Alcançado este limite não queremos agora subtrair-nos à consequência que lhe resulta, isto é, que com a livre negação, com a supressão da vontade, tudo isto simultaneamente se suprime; ficam suprimidos, então, aqueles impulsos e aquelas agitações sem trégua e sem finalidade que constituem o mundo em todos os graus objetivados; suprimidas aquelas formas diversas que se sucedem e se elevam progressivamente; suprimido com o querer, também, o conjunto do seu fenômeno; suprimidas, finalmente, as formas gerais do fenômeno, ou seja, as formas do tempo e do espaço e suprimidas, por fim, a forma fundamental de sujeito e objeto. Não mais vontade, não mais representação, não mais universo. E então, sem dúvida, não nos fica doravante, senão o Nada. Mas não nos esqueçamos de que aquilo que se revolta em nós contra semelhante aniquilamento é a natureza que outra coisa não é senão o querer-viver, essência do homem e do universo. Este horror pelo Nada é apenas um modo diferente de exprimir que queremos ardentemente a vida, que nós não somos nem conhecemos senão o querer-viver. Todavia, desviemos o olhar por um momento da nossa indigência e do nosso horizonte em demasia limitado; levantemo-lo até aqueles homens que superaram o mundo, até aqueles homens cuja vontade, atingida a perfeita consciência de si, reconheceu-se em tudo o que existe e renunciou-se livremente a si mesma, até aqueles homens que não esperam mais do que ver desaparecer também o débil e derradeiro sopro que lhes anima o corpo; então, em lugar desse tumulto de aspirações sem finalidade, em lugar dessas passagens contínuas do desejo à inquietação, da alegria à dor, em lugar dessas esperanças sempre insatisfeitas e sempre renascentes que fazem da vida humana, até que a vontade a excite, um sonho ininterrupto, então sim, não veremos senão essa paz que é mais preciosa que todos os tesouros da razão, essa calma absoluta do espírito, essa quietude profunda, essa segurança, essa serenidade imperturbável, cujo traço Rafael e Corrégio deixaram na figura de seus santos e cuja irradiação deve ser para nós o mais completo e verídico anúncio da boa nova (Evangelium). A vontade desapareceu, só permanece o conhecimento. Somos tomados duma profunda e dolorosa melancolia quando confrontamos tal condição com a nossa, por isso que o contraste lhe faz ressaltar ainda melhor toda a incurável desolação. E contudo, a única perspectiva suscetível de nos consolar ainda, depois de nos termos convencido de que a dor inexorável e a infinita miséria são a essência desse fenômeno da vontade que se chama o mundo, é ver desvanecer-se o universo e ficar somente o Nada diante de nós, quando a vontade haja conseguido suprimir-se. Por consequência, meditar sobre a vida e os atos dos santos, se não com a observação direta, de raro possível na experiência pessoal, ao menos estudando-os como a história no-los apresenta ou como a arte no-los descreve, como um quid infalível de verdade, é para nós o único meio de dissipar o lúgubre efeito desse Nada que vemos evolar-se, como resultado final, por detrás de toda virtude e toda santidade, desse Nada que nos espanta como a crianças que a escuridão faz tremer; isto vale mais do que querer iludir esse terror, a exemplo dos Hindus, com mitos e palavras ocas de sentido, como a absorção em Brama, ou o Nirvana dos Budistas. Sim, reconhecemo-lo abertamente: o que resta depois da supressão total da vontade, para aqueles a quem, todavia, a vontade ainda anima, efetivamente é o Nada. Mas vice-versa, para aqueles em quem a vontade foi suprimida e convertida, o Nada é este mundo, tão real com os seus sóis e as suas vias-lácteas.” (...) [“O mundo como Vontade e Representação”, Arthur Schopenhauer.]