El País: O senhor contou que uma vez, sobrevoando a baía de Baffin numa viagem ao Canadá, viveu um momento revelador ao ver como o gelo retrocedia. O que aconteceu?
Bruno Latour: Olhando pela janela, percebi que a placa de gelo, por sua forma, resumia o problema que vivemos. Ao estar no avião eu já não assistia a um espetáculo, mas o estava modificando, pois o CO2 que a aeronave emite influi na placa de gelo. Antes, esse espetáculo – o da placa de gelo vista do avião – teria tido um caráter sublime. Agora é complicado senti-lo assim. Se te dizem que você é responsável pelo que vê, o sentimento é diferente, é uma forma de angústia.
El País: Essa é a vertigem da qual fala no livro?
Bruno Latour: Antes, a angústia que a natureza nos causava vinha do fato de que éramos pequenos demais, e a natureza era imensa. Agora temos o mesmo tamanho, influímos em como a Terra se comporta. E é desorientador, por exemplo, para os jovens que se manifestam (contra a mudança climática). Da extrema esquerda à extrema direita, todas as posições políticas estão marcadas pela angústia.
El País: No caso dos coletes amarelos ou dos eleitores de Trump, a angústia é mais econômica que ambiental, não?
Bruno Latour: É como se o solo do país onde estou já não me fosse favorável. Não é ecológica no sentido da natureza, mas é do território. O problema é esse sentimento de perder o mundo. Já existia antes, mas eram os artistas, os poetas, que o sentiam. Agora é um sentimento coletivo.
El País: Segundo o senhor, uma elite, ante essa situação, diz: “Vamos embora”. Abandona o barco.
Bruno Latour: Comparemos isso com as reações fascistas dos anos trinta. Há semelhanças, uma espécie de retirada nacional, étnica. Mas naquela época eram projetos de desenvolvimento.
El País: Desenvolvimento em que sentido?
Bruno Latour: Era uma loucura, mas era um projeto de civilização. Agora estamos diante de um projeto para desfazer os vínculos, abandonar as construções. A reação mais extraordinária de Donald Trump consiste em dizer: “Nós não temos problemas de mudança climática; é algo que ocorre na casa de vocês, não na nossa.” Ele considera que o continente americano não está sujeito aos mesmos problemas climáticos que a Europa ou a China. Isso é uma novidade.
El País: Mas Trump é uma exceção, não? O Acordo de Paris para combater a mudança climática foi firmado pelos Governos do mundo todo, o que poderíamos chamar de elites.
Bruno Latour: Essa ideia de abandonar as obrigações é compartilhada agora também pelo Brasil, e consiste em dizer: “Vamos embora.” Essa é a versão Trump, mas existe outra variante high tech que diz: “Nós também vamos, mas rumo a um futuro tecnófilo extremo.” É o projeto californiano, pós-humano, Marte, a inteligência artificial, os robôs. O interessante é que agora existem pessoas que vivem em planetas diferentes.
El País: E outras, diz o senhor, que fogem para o âmbito local.
Bruno Latour: Sim, a reação dos que se sentem abandonados pelos que vão embora para Marte é regressar ao Estado-nação como o imaginam, um Estado-nação imaginado, uma ficção. O exemplo é o Brexit. Ao contrário dos fascismos, não há um retorno a uma conquista territorial, e sim a um Estado-nação vazio de todo sentido prático. Então alguns vão para Marte, outros regressam ao planeta nacional, que também é abstrato, e no meio estamos os infelizes que pensamos que, em um momento ou outro, será preciso aterrissar: reconciliar a economia, o direito, a identidade com o mundo real do qual dependemos.
El País: Aonde regressar exatamente?
Bruno Latour: Ao [plano] terrestre. Pode parecer estranho: por que aterrissar se já estamos na Terra? Mas os europeus, os ocidentais, temos vivido numa Terra muito utópica. Imaginávamos que ela se desenvolveria ad infinitum, sem limites. Mas o sonho de que o planeta se modernizaria indefinidamente nunca foi verificado, não tinha fundamento material. Desde o século XIX, com o carvão e o petróleo, a economia havia se tornado infinita. E há uma angústia geral por esse desajuste.
El País: Diante disso, pode haver uma ideia compartilhada da verdade?
Bruno Latour: As pessoas se queixam das fake news e da pós-verdade, mas isso não significa que sejamos menos capazes de raciocinar. Para conseguir manter um respeito pelos meios de comunicação, a ciência, as instituições, a autoridade, deve haver um mundo compartilhado. É um tema que estudei no passado. Para que os fatos científicos sejam aceitos, é preciso um mundo de instituições respeitadas. Por exemplo, sobre as vacinas se diz: “Estas pessoas ficaram loucas, estão contra as vacinas.” Mas não é um problema cognitivo, de informação. Os que são contra não serão convencidos com um novo artigo na revista The Lancet. Essas pessoas dizem: “É este mundo contra este outro mundo, e tudo o que se diz no mundo de vocês é falso.”
El País: Os fatos não existem independentemente desses mundos?
Bruno Latour: É preciso sustentar os fatos, não vivem sozinhos. Um fato é só um cordeiro frente aos lobos.
El País: Quem são os lobos?
Bruno Latour: Os que devoram os fatos. Um fato deve estar instalado numa paisagem, sustentado pelos costumes de pensamento. São necessários instrumentos e instituições. As vacinas são o exemplo de um fato que precisa de uma vida pública. Se eu sair pela rua com uma seringa tentando vacinar as pessoas, serei considerado um criminoso. Se a vida pública é deteriorada por pessoas que consideram que – não importa o que você disser – este não é o mundo delas, os fatos não servem para nada.
El País: Mas nesse caso há um fato: as vacinas são úteis, não importa se os outros acreditam ou não.
Bruno Latour: No meu mundo e no dos leitores do EL PAÍS, sim. Mas nem todo mundo lê o seu jornal, nem tem um doutorado, nem confia nas instituições médicas, nem vive num país onde o Ministério da Saúde apoia as vacinas. É preciso muita coisa para sustentar os fatos.
El País: Os dois mundos valem o mesmo?
Bruno Latour: Não, mas estão em guerra. É um problema geopolítico. Antes, eram problemas de valores ou ideologia, mas num tabuleiro estável. Agora, não. O mapa está em discussão. “Na América não há problema climático, isso é falso”, diz Trump.
El País: Qual é a solução?
Bruno Latour: Se aterrissarmos no terrestre, poderíamos começar a definir um mundo comum. Então já não poderíamos nos permitir dizer que não há mudança climática, que os problemas de saúde não nos dizem respeito, que a reprodução das abelhas não é nosso problema. Voltaríamos a discutir entre civilizados.