Antes de mais nada, obrigado pela resposta. Bem mais embasada do que costumo ver por aí. Mas algumas coisas ainda me parecem nebulosas, talvez por eu não ter sido claro o suficiente.
Tb agradeço, sua mensagem muito mais educada e com conteúdo do que tenho visto em fóruns. Devo dizer que gosto muito de suas mensagens no tópico “Você acredita em Deus?” e acredito que em parte isso me motivou.
Mea culpa. Usei uma hipérbole sem avisar... mas você talvez concorde comigo que há uma parcela muito barulhenta e evidente que não só por vezes é ignorada pela ala mais calma da esquerda, como também é protegida - haja visto movimentos como Antifa nos EUA, que inclusive rejeitaram o discurso do Trump de que houve excessos de ambos os lados em Charlottesville. Pessoas com algum poder de divulgação costumam tentar justificar ditaduras como Cuba e Venezuela (como Luciana Genro e Jeremy Corbyn), que pela simples existência da figura de um ditador foge completamente de qualquer definição de igualdade que eu consideraria coerente.
Concordo integralmente e vou além a eleição de Trump é tanto uma ascensão de sentimentos fascistas, como uma reação popular a uma política que economicamente é de centro-direita, falo da ala corporativa do partido Democrata, quanto no campo social e cultural uma reação aos excessos do politicamente correto, aplicado por uma esquerda com tendências autoritárias, e contraria a liberdade de expressão, que eu tenho muitas críticas.
Se Corbyn faz desculpas para Cuba e Venezuela eu lamento, pq em outras questões concordo muito com ele, imagino, mas teria que ver, que ele esteja criticando o bloqueio americano, como algo desumano, e criticando no caso da América Latina, as diversas ações dos países de primeiro mundo de interferir nos países latino americanos. Agora se ele não critica as prisões políticas, e o autoritarismo, ai ele está simplesmente errado. É possível criticar duramente o intervencionismo, especialmente dos EUA, na América Latina, o que explica em parte isolamento de certos países, sem com isso querer justificar crimes e autoritarismo.
Eu sinceramente não sei se ele cruza essa linha que aqui expus.
Mas um ponto me deixou curioso e não fui capaz de encontrar no link que vc colocou: no final do texto, Bernstein reconhece que muitas das ideias que ele apresenta ali não estão em pleno acordo com as ideias de Marx/Engels, mas não fica clara quais são...
Ele tinha várias divergências, embora concordasse que as relações de produção levassem o capitalista a concentração de poder, ele não concordava com o caminho revolucionário, do que ele chamaria de Marx imaturo, e defende a visão posterior de Marx que incluía a possibilidade de uma via legislativa.
Gramsci inclusive bem depois expandiu sobre esse caminho que não era baseado em violência, que chamou de Guerra de posição. A guerra de movimento seria a tomada brusca do poder, e seria necessária, na visão de Gramsci, nos países que não se tem mediação, países com regimes autocráticos, como o czarismo (na Rússia), aonde não há como fazer p0ela via legislativa, e a repressão é muito grande para a prática da política, sendo o confronto a única forma, nesses casos.
Vale dizer que não sou especialista em Bernstein para detalhar a natureza de outras divergências que ele tinha. Posso falar com mais propriedade sobre divergências que eu tenho com Marx, embora muitas dessas tem um que de anacronismo, já que são divergências em que eu tive a possibilidade de examinar uma história que ele não viveu.
O Estado de Bem-estar social é um ponto complexo para mim: com certeza suas propostas estão mais à esquerda do que o que havia antes, mas ele existe claramente para manter o Capitalismo como sistema vigente. Ainda que exista uma preocupação com o bem-estar social (e eu tenho certo receio em admitir que isso é uma causa exclusiva da esquerda; talvez historicamente, mas não necessariamente), esse bem-estar traz claros benefícios para o sistema capitalista e não aponta nenhuma resolução para o acúmulo dos meios de produção.
A defesa do Estado de Bem-Estar Social não é um ponto pacifico na esquerda. Alguns entendem a defesa de direitos sociais como um passo intermediário, algo que precisa ser feito agora, para diminuir o impacto das desigualdades socioeconômicas, mas essas políticas são insuficientes a longo prazo. Já outros como Bernie Sanders, parecem defender o Estado de Bem-Estar Social como objetivo último, que precisa apenas ser aprimorado.
Eu me coloco mais no primeiro bloco, ou seja, em um país que não temos nem Estado de Bem-Estar social, ou seja, um sistema universal de saúde de qualidade, educação de qualidade, seguridade social, isso é prioridade. Porém, eu entendo que estimular e expandir o setor cooperativo é algo que um governo de esquerda deve fazer, visando a longo prazo gradualmente dar mais poder aos trabalhadores no espaço de trabalho, a democratização do espaço de trabalho seria o objetivo último, no que tange a economia.
Sobre a Mondragon, eu acho extremamente válido esse modelo, e acho que deveria ser adotado por quem quisesse. O que eu não percebo, é como seria a transição final, pois não consigo perceber uma ressocialização dos meios de produção sem a entrega voluntária pelos atuais capitalistas - o que eu acho meio utópico. Em algum momento, essa "troca de mãos" deverá ser exercida pela força ou pela lei... sempre se usa essa questão de não-violência, mas o único meio dessa transição ser não-violenta é se a entrega dos meios de produção for vantajosa para quem hoje os detém - mais do que isso, é necessário convencê-los disso.
Não é necessário convencer, nem é necessária violência. É possível estimular o setor cooperativo de forma que ele se torne mais competitivo, e assim ele gradualmente vai substituindo as empresas tradicionais. E existem exemplos de empresas cooperativas que se tornaram líderes em seu setor. Um Governo que favorece cooperativas, ajudando elas no que tange formação, administração, poderia contribuir para essa substituição gradual, sem nunca precisar recorrer a subsídios diretos, algo que sou contrário, aliás se dependesse de mim o Estado não daria subsídios a nenhum setor privado.
Agora eu concordo que esse processo seria cercado por conflitos, e risco de violência, mas ele poderia ser feito de forma gradual, com o estimulo ao setor cooperativo, e a democratização do Estado, das instituições, empresas públicas, convertendo a forma democrática de se administrar empresas no padrão, a longo prazo. Eu não seria favorável a proibição de empresas não cooperativas, mas sim defenderia que a forma cooperativa e democrática fosse estimulada.
Veja o exemplo da Itália. Se vc é demitido do seu trabalho vc pode receber auxílio desemprego por 2 anos, ou receber o valor de 2 anos de trabalho, na integra, assinando um compromisso de montar uma cooperativa, com outros trabalhadores que fazem parte desse programa estatal de criação de cooperativas. Os trabalhadores juntam o dinheiro que é deles, por direito, e fundam uma empresa em que todos são donos, e continuam trabalhando, agora em sua empresa, invés de ficar 2 anos recebendo salário fora do mercado de trabalho. Defendo iniciativas como essa. Vale dizer que o Estado age como facilitador, mas não é dono do empreendimento, distinção fundamental.
Isso continua não fazendo sentido. Uma vez definida uma ideia, considerar-se-á (hehehe) partidário daquela ideologia quem compartilhar de suas ideia. É claro que sempre se pode cair na Falácia do Escocês de Verdade e dizer, por exemplo, para ser vermelho tem que ter tatuado a foice e o martelo... mas não faz o menor sentido vc defender todas as pautas da direita e ainda assim querer ser reconhecido como esquerda porque "vc não precisa de X,Y ou Z para ser de esquerda". O que eu pretendia era exatamente tentar separar essa carga que as pessoas atualmente carregam em ideologias, que não são intrínsecas a ele - como o Ateísmo+, feminismo interseccional etc.
Sem dúvida existem critérios, e não são inteiramente arbitrários, eu diria que são históricos. Minha preferência pelos de Bobbio tem a ver com a clareza e o fato de serem mais tranquilos de serem aplicados a uma grande variedade de movimentos. Por exemplo, políticos que se colocam contra o aborto, mesmo em caso de estupro, por motivos religiosos, estão na direita, baseados no princípio do apelo a tradição. Já os que defendem que aborto deve ser escolha da mulher (claro que é necessário definir até que mês...), estão na esquerda, culturalmente, no campo tradicionalmente chamado de progressista. Mas o critério da igualdade, que citei antes, também ajuda, enquanto a direita tende a defender sobremaneira o direito individual, a esquerda privilegia os direitos sociais, como prioritários, tendo em vista promover maior igualdade. Isso fica bem visível quando a direita defende a privatização da saúde, e que cada um pague a sua, e a esquerda defende universalização do direito a acesso de serviços de saúde, como um direito de cidadania.
Por essa definição, entendo que pode-se adotar uma postura caso-a-caso (por exemplo, a favor da liberação das drogas, mas contra o aborto), e reconhecer-se como esquerda ou direita pelo saldo dessas posições ou o resultado daquelas que a pessoa consideraria mais importante. É isso?
Sim...
Eu separaria fundamentalmente o campo cultural, por exemplo: liberalização das drogas, aborto, pena de morte, ensino secular/religioso(criacionismo)...
do campo econômico: privatização vs direitos sociais, diminuição dos impostos inclusive das grandes corporações vs estimular o setor cooperativo....
e o campo político: financiamento privado das campanhas vs financiamento público(ou apenas de indivíduos com limites rigorosos), restrição da democracia e do poder popular (apoio a ditaduras) vs apoio a democratização do Estado e da sociedade.
Uma pessoa pode ser progressista culturalmente, mas liberal economicamente. Uma pessoa pode ser conservadora culturalmente, mas pode ser socialdemocrata ou socialista economicamente. Na política a pessoa pode tender para uma postura elitista, ou pode ser democrata-popular.
Esses três eixos, cultura, economia e política, não se alinham perfeitamente nas pessoas pois seres humanos são complexos, e aderem a ideologias por motivos diversos. Vale dizer que existem questões que cruzam esses eixos, quem defende como eu democratização do Estado e do espaço de trabalho, defende por razões muito semelhantes, embora uma posição está mais relacionada a grande política, ou política do Estado, das instituições que administram uma nação, e a outra está relacionada aos meios de produção, e a produção econômica de uma sociedade.
Concordo com sua visão sobre o saldo, mas acho que eu faria um saldo cultural, separado do saldo econômico, separado do saldo político. Se estivesse fazendo um questionário para descobrir se a pessoa é conservadora ou progressista, se é liberal ou socialdemocrata, e se é autoritária ou libertária. Vale dizer que o eixo autoritário ou libertário não é esquerda ou direita, pois existem autoritários e libertários tanto de esquerda quanto direita.
Peço desculpas se fui prolixo, mas o tema, é de meu interesse e vc fez boas perguntas. Lembrando que muitas dessas questões são polemicas, e embora minhas preferencias, por exemplo, pelas definições de Bobbio, tenham embasamento, eu jamais sugeriria que se trata de uma questão fechada. Ao contrário, diria que a natureza histórica da controvérsia faz com que essa questão fica aberta, mas podemos fazer tentativas de aproximação e usar teorias para compreender melhor, e afinal, essa é essência do trabalho cientifico.