28/01/2014 às 05h00
Governo argentino improvisa maxidesvalorização do peso
A maxidesvalorização do peso argentino, induzida pelo governo de Cristina Kirchner, parece ter sido feita por amadores. O ministro da Economia, Axel Kicillof, dando sequência à política de seus antecessores, praticamente proibiu a compra ou gastos em dólares pelos argentinos, ao mesmo tempo em que corrigiu em pouco tempo o dólar - 62% em um ano, 23% só em janeiro. A nova equipe econômica fez correção desta magnitude sem um plano para sustentar o realinhamento da moeda. Agora improvisa ao ar livre e enfrenta uma crise cambial.
Após atingir 8 pesos por dólar na segunda-feira, o governo teve um momento de alívio ontem, quando a cotação não se moveu, nem a oficial nem a do mercado paralelo. A equipe econômica fez um simulacro de recuo ao permitir de novo a formação de poupança interna em dólares, mas em condições acessíveis apenas aos argentinos mais ricos e até um teto de US$ 2 mil mensais. Cidadãos podem comprar o equivalente a 20% de sua renda mensal. A renda mínima exigida é de 7,2 mil pesos (US$ 900 ao câmbio de ontem), que exclui dois terços dos assalariados do país. Para poder adquirir o teto de US$ 2 mil, é preciso ter rendimento médio de 80 mil pesos, obtido apenas pelo topo da pirâmide salarial. Dinheiro acumulado como patrimônio ou resultante da venda de bens não dará direito à compra da moeda americana, que será taxada com imposto de 20%, a menos que o comprador deixe os dólares repousarem em uma aplicação a prazo fixo nos bancos.
As demais medidas para o racionamento de dólares continuam válidas - impostos de 35% para gastos com turismo no exterior e cartão de crédito, limite ridículo de US$ 25 para compras online em sites do exterior. Em suma, as restrições continuam a um passo da proibição de compra pura e simples.
A maxidesvalorização tende a agravar no curto prazo a inflação, que está na raiz do problema cambial. Sem um plano para estancar a inflação, a desvalorização nominal será corroída pela corrida dos preços domésticos, sem ganhos de competitividade. O Banco Central deve entrar em ação elevando os juros de curto prazo em 7 pontos percentuais, para 26%, para melhorar a atratividade do peso ("Clarín", ontem), enquanto deve estabelecer taxa compensadora para manter dólares nas aplicações bancárias. Mas o BC precisará puxar bem as taxas para ter sucesso, já que hoje os juros são negativos.
O modelo econômico dos Kirchner dá sinais claros de esgotamento. Sem crédito externo, ele emitiu pesos para financiar gastos. Segundo Martin Redrado, ex-presidente do BC, a relação entre reservas e a base monetária, que era de um para 4 quando o país possuia US$ 50 bilhões, em 2010, está agora em um para 13, com reservas de US$ 29 bilhões ("Financial Times", ontem). O déficit público crescente, com boa parte dos gastos em subsídios ineficientes, alimentou a inflação e o crescimento, sem a ampliação forte dos investimentos, já prejudicados pela insegurança regulatória.
Os indicadores argentinos não são ruins, mas exigem qualificações. O déficit em conta corrente é de apenas US$ 3,6 bilhões, ou 0,7% do PIB, porque o país não tem crédito na praça e não pode incorrer em déficits maiores sob risco de nova crise. Seu mercado financeiro foi abandonado pelos investidores externos, exceto os amantes dos riscos muito altos. A dívida bruta argentina é de 47,7% do PIB em 2013 (cerca de US$ 217 bilhões) e majoritariamente doméstica.
Ainda assim, a Argentina vive uma crise cambial peculiar. A corrida contra o dólar nada tem a ver com a clássica debandada do capital externo e ação especulativa de bancos internacionais, que já deixaram o país no calote de 2002. Hoje ela é provocada quase que exclusivamente pelos argentinos. Há uma crise de confiança na moeda, que emerge quando a inflação dá sinais de sair do controle. O refúgio histórico dos argentinos é o dólar. Em tese, uma crise com raízes domésticas é mais fácil de consertar com o governo fazendo a coisa certa. O passado e o presente do país mostram que as chances maiores são de que isso não ocorra. A gritaria contra os especuladores e soluções anacrônicas como as que se ouvem nos gabinetes de Cristina - queixas ao egoísmo dos empresários, proposta de monitoramento de preços etc -são indícios de que o governo de Cristina Kirchner não pretende executar medidas impopulares.
Fonte: Valor