Mass Effect 2: A Odisseia
Sabe-se do poder de certas obras notadamente capazes em manter um indivíduo aprisionado. Obras tais quais The Lord of The Rings, The Godfather, Star Wars – a sequência clássica, evidentemente –, Mad Max ou Hannibal Lecter, por exemplo, assumindo serem partes de um todo, não permitem, sobretudo pelo ritmo, que o espectador as consuma paulatinamente ou com um extenso hiato. São também conhecidas, em verdade, por este fenômeno e é oportuno invocar tais peças neste momento: dão o tom do que deve esperar o jogador disposto a se aventurar pelo universo de Mass Effect, produzido e desenvolvido com louvor pela BioWare e publicado pela Electronic Arts, seja pela apresentação dos vários personagens e suas tramas, assim como pelos momentos de tomada de decisão e a implicação do comportamento e das escolhas feitas pelo player ao longo da jornada. Posso antecipar que nada disso parece artificial, tampouco que o jogador não se sinta, em alguma medida, devidamente responsável pelo próprio destino. Não apenas o seu, aliás, mas guardião daqueles pelos quais pretende – ou não – zelar mediante escolhas. Fazemos a nossa história e por ela seremos cobrados.
Como no início de qualquer título, seja na forma de um livro, filme ou série (ou jogo, é claro), é natural que haja determinada estranheza, especialmente nos casos onde se observe um grande adensamento e profundidade dos elementos nele presentes – e com Mass Effect não é diferente. Estruturalmente, a saga é construída de modo que seu pleno aproveitamente se dê, na minha opinião, somente, e tão somente, no momento em que o player tome conhecimento de tudo o que está em jogo — e perdoe-me a ironia. Nesse sentido, seja por algo aparentemente singelo, como o drama envolvendo a família de um personagem ou indisposições dentro de um grupo, seja pelos fatos de proporções homéricas narrados, como a incerteza sobre o destino da humanidade diante de uma grande ameaça – e me limitarei, aqui, a este exemplo em respeito aos que ainda não jogaram –, a sequência de jogos de Mass Effect demonstra-se sublime. Se grande parte disso é feito já no primeiro, cujo hoje entendo tratar-se de uma introdução em altíssima escala, no segundo, somos apresentados ao desenvolvimento da história e suas respectivas consequências. (Este é o início de Mass Effect 2 – e a segunda parte da minha resenha sobre estes clássicos: A Odisseia).
Como se fosse ontem, lembro-me do sábado onde tudo começou. A temperatura era amena (14 ºC, 15 ºC?) e, como de costume, levantei cedo – talvez até cedo demais para um sábado, diria alguém – para cuidar dos meus gatos, tomar um café da manhã (café mesmo; café preto) e alguns cuidados básicos de higiene. Voltei para o quarto, liguei minha televisão, peguei o DualSense, liguei o PlayStation, mudei a saída de áudio para a ótica, coloquei o headset, abri Mass Effect: Legendary Edition e fui concluir a campanha de Mass Effect 1. Sim, Mass Effect 1. (Para esclarecer: eu jogo apenas aos fins de semana e sucede que a jogatina da semana anterior, encerrada no domingo à noite, já havia se estendido muito. Pelo teor e intensidade da história naquele instante, era facilmente presumível que estava me dirigindo à porção ou ato final do jogo. Na ocasião, já me encontrava tão dentro da história que achei por bem concluir a campanha de cabeça descansada no final de semana seguinte e emendar a sequência, já que, só naquele domingo, havia jogado cerca de 12 horas. Dito e feito.). Os créditos subiram e, assim, poucos minutos depois erguia-se no horizonte o início da jornada em Mass Effect 2.
Diante dos meus olhos, como num passe de mágica, tudo se reiniciou. “O que está acontecendo?”, “Ora, eu importei meu save. Onde está meu squad?”. Parecia improvável o que se revelava – mas improvável não é impossível. O prólogo é intenso, caótico, e você não esperaria ver nada do que foi mostrado. Você tenta entender o que está acontecendo; por quê está acontecendo. O jogo não faz cerimônia e choca antes mesmo de começar. Nesta continuação, estamos sob o domínio de outro grupo, um desses menos ortodoxos, por assim dizer, e que mais se assemelham a braços faccionalizados de instituições legítimas conhecidas. Um grupo paramilitar com notável disposição tecnológica, tocado à despeito da ordem, que é, em última análise, uma instituição por definição anti-heróica (em analogia ao que entendemos por “anti-herói”, como Wolverine, Venon ou Deadpool), da qual as legítimas forças estabelecidas não podem abrir mão, sobretudo pela possibilidade de operação sem determinados filtros morais e legais, valendo-se destas prerrogativas – ou a falta delas – a fim de lidar com um evento tão mais inédito do que a Guerra do Primeiro Contato. Coisas perturbadoras são prontamente reveladas e você é finalmente pego com a guarda baixa. “Cerberus?”.
Não se dança tango sozinho; não se faz verão com uma andorinha só e nem se salva a galáxia sem antes a formação de um squad adequado. A sequência traz novos dez personagens controláveis e dois parceiros já conhecidos, mas a um custo de tempo muitas vezes maior que o primeiro por meio de missões intituladas “Dossiers” – e isso é plenamente justificado. Lidamos com eles frequentemente dentro da Normandy durante os diálogos, que são momentos importantíssimos não apenas pela lore, mas também por serem peças fundamentais dentro do sistema de upgrade da nave – vital, principalmente, para o ato de encerramento – e, em alguns casos, dos próprios companions. Não são os únicos, evidentemente: há personagens fora da nossa área de interação direta, responsáveis, quando não por momentos épicos, pelo andamento da história principal. Dos mais amavelmente carismáticos aos enigmáticos e misteriosos, que trazem consigo uma série de segredos, mentiras, manipulações e interesses escusos, Mass Effect é uma verdadeira aula no departamento. Nesta sequência, vale dizer, a saga se destaca ainda mais, vez que 1) preocupa-se em dar o devido tempo de tela para cada um destes 12 personagens e, como consequência, 2) aprofunda a relação dos companions com o protagonista, estreitando e estabelecendo verdadeiros laços.
Sem entrar em detalhes, mais uma vez atendendo aos que ainda não puderam e pretendem jogar, para cada um destes personagens será disponibilizada uma missão de confiança sempre no formato de “[Fulano de tal]: [Subtítulo]”, num total de 12 quests, através das quais serão revelados detalhes do passado, tramas, muitos dilemas e a origem "profissional" de cada um deles. Elas chamam atenção não apenas pela duração – que, regra geral, pedem cerca de 1h40min –, pela intensidade do combate, em função dos diálogos ao longo do processo ou pelos eventuais segredos descobertos: são missões que convidam o jogador a testemunhar a história dos companions a partir da perspectiva destes mesmos companions, ainda que não sejam personagens de fato jogáveis, mas que estão, muitas vezes, em busca de vingança ou redenção. Shepard, ao mesmo tempo, é espectador de seus dramas e ferramenta capaz de viabilizar suas reais intenções, mas não se engane: as suas intervenções aqui podem fazer toda a diferença. Você pode ser o esteio ou a ruína de um colega; a âncora ou o estado de deriva de um companheiro; a ponte que os conecta ou a dinâmite que os afasta; o sucesso ou fracasso de uma missão. Arrisco dizer que, da perspectiva de quem quer apenas zerar o jogo, são missões opcionais, mas obrigatórias para aqueles realmente interessados pelo universo aqui criado pela BioWare.
É claro que não é possível falar tudo isso sem mencionar um dos verdadeiros tesouros do jogo: os diálogos. De forma resumida, um dos melhores disponíveis na indústria – e é justamente por este fato que eu seria incapaz de fazer uma mera menção. É difícil imaginar que, num espaço tão curto entre os lançamentos, tenha sido possível atingir tamanha qualidade, já que há um número imenso de elementos dentro da obra que requerem, concomitantemente, atenção – e isso assusta. Gameplay, a estruturação de um ritmo adequado, variedade de missões, boss fights, cenários e ainda os desdobramentos com início, meio e fim baseado nas escolhas parecem um trabalho penoso por si só, e o espanto, neste caso, justifica-se. Para além da qualidade técnica de escrita dos textos, os diálogos, recorrentemente, inserem o jogador ainda mais à obra quando permitem uma ação ou escolhas mais incisivas. Apelidada por mim de “Shepard’s Indoctrination”, a mecânica de diálogos e QTE com base nos status Paragon e Renegade adicionam uma camada ainda mais profunda na relação do protagonista com seus companheiros de equipe. Elemento também presente no anterior, a calibração do personagem que, de forma resumida, são os diálogos convencionais e quick time events, determinará a sua própria inclinação.
Pendam suas escolhas no sentido da bondade, neutralidade ou em busca do completo caos, fato é que as decisões têm peso e isso é construído gradativamente ao longo da campanha. Você percebe ternura e respeito vindo de seu colega? Então você mereceu. Ele talvez esteja soando belicoso demais? Bom, pense melhor da próxima vez antes de selecionar o diálogo – a não ser, é claro, que esta seja a intenção. O ponto aqui é que você é constantemente cobrado pelas próprias escolhas, e se os jogos já são conhecidos por requererem uma colaboração ativa por parte de quem os consome – afinal, o jogo não se jogará sozinho –, em Mass Effect você lida com instâncias maiores no que diz respeito à própria participação. Diferente da maior parte dos jogos com foco narrativo, RPGs, especialmente os clássicos, costumam oferecer uma complexidade atípica neste fronte. A contrapartida, via de regra, é uma simplificação de um ou mais elementos (v.g., modelos, iluminação, ambientes poucos detalhados, mecânicas e etc.), e também é exatamente por este motivo que ME merece considerável reconhecimento: para uma série de jogos que datam ao período de PlayStation 3 e Xbox 360, são títulos verdadeiramente muito bonitos, detalhados, com uma respeitável quantidade de interações, estimulando e recompensando a exploração e, como se não fosse suficiente, oferecendo uma riqueza indizível, seja o objeto de observação a história, story telling, lore ou, obviamente, os diálogos. De todo modo, um RPG brilhante.
Quando falamos do design das missões, tenho a impressão de que foram pensadas ou, no mínimo, dirigidas por outro membro da BioWare. Para tentar ilustrar, nos parágrafos subsequentes tomarei como exemplo a utilização dos cenários e o design dos mundos. Há, é claro, mudanças mais tímidas no gerenciamento de curso das missões, como nas interações com personagens randômicos, mas a evolução neste departamento é digna de nota em razão de dois motivos: o primeiro e mais patente deles é que isso se observa com muita raridade nos jogos de hoje. Seja pelo nível de complexidade dos produtos do final da 7ª geração em diante ou pela possibilidade de que os estúdios tenham encontrado certa harmonia para a estruturação das missões – muito por influência, acredito, de jogos como The Last of Us, The Witcher 3: Wild Hunt e Grand Theft Auto: V –, fato é que muitas das obras atuais não mais pretendem se arriscar ou aventurar nesta área, que dirá inovar. O segundo, embora menos evidente, é que o novo design parece favorecer o pacing das atividades gerais. Enquanto no primeiro você goza de algum nível de liberdade para explorar os vários mundos vazios, neste, estes momentos estão inseridos durante as missões, avolumando-as e tornando o jogo mais denso, prazeroso e – por que não? – propositado. Trocando em miúdos: no primeiro você tinha, na prática, dois jogos destacados, sendo um deles voltado à exploração (que não era de fato recompensadora) e o outro para as missões propriamente ditas, ao passo que, no segundo, você tem um melhor aproveitamento delas, impactando, em última análise, na construção do personagem. O que eu posso adiantar, não obstante, é que, na minha opinião, este talvez tenha sido o maior acerto do estúdio aqui.
Pretenda o jogador observar a disposição dos inimigos, o uso de um ataque em área, a análise dos cenários para composição tática nos momentos de combate ou uma série de outras melhorias, a realidade é que Mass Effect 2 traz uma evolução expressiva no que diz respeito ao level design. Em muitas ocasiões, você se pegará olhando para tudo à própria volta, menos para os inimigos ou bosses, o que parece bastante curioso. Explico: quando o player se habitua ao esquema de controles, aprende seus atalhos, assimila a mecânica de combos, de danos, por assim dizer, “elementais” e os arranjos cenário a cenário, ele subitamente passa a jogar outro jogo – e foi justamente nesse sentido que trouxe como destaque a utilização destes ambientes. Diferente de shooters mais simplificados, em Mass Effect (e aqui não importa se você está jogando o primeiro, segundo ou terceiro) você controla a sua equipe. Não apenas isso: você decide quais armas usarão, quais upgrades farão, quais ataques especiais serão utilizados (e se utilizarão arbitrariamente ou somente sob suas ordens), assim como o exato local onde cada um deles se posicionará.
A grande novidade desta continuação, todavia, é que os locais desenhados para o travamento de combates agora favorecem seu progresso do início ao fim, afinal, o volume de inimigos no jogo é muito maior, assim como os cenários, e a dinâmica impressa aqui é flagrante: você se posiciona, posiciona seus companheiros, abate a primeira wave de inimigos, escala "X%" da sala e estabelce domínio, sufocando-os e dando cada vez menos margem de ação. É estimulante, frenético e, ao mesmo tempo, requer atenção — e isso te coloca lá dentro da luta. É de se pensar que já no primeiro há alguma liberdade para o progresso da missão especificamente nos momentos de gunplay, mas nada que seja comparável ao segundo. O posicionamento das estruturas de cover parece ter sido escolhido a dedo, oferecendo não apenas uma batalha mais justa, mas tática, assim como agora é possível usar elementos dispostos no cenário para dar abertura, enfraquecer ou até mesmo aniquilar um conjunto de inimigos – e tudo de uma única vez. Também ajuda o fato de que há uma melhora na inteligência artificial dos NPCs. Seus inimigos agora são menos “kamikaze” e, ao mesmo tempo, seus companions se movimentam mais inteligentemente. Isso é um legítimo game changer.
Os mundos aqui, por sua vez, apresentam outra natureza de evolução. Note-se, antes de tudo, que a quantia de mundos “mundo aberto” foi drasticamente diminuída. Este novo conceito não é um problema e eu vou tentar demonstrar isso. Em primeiro lugar, como havia dito anteriormente, a fase de exploração, que era um elemento operando à parte do jogo principal no primeiro Mass Effect, está agora inserida em outro contexto: as missões propriamente ditas de Mass Effect 2, e isso deu espaço para algo que é negligenciado pelas grandes produtoras há muito tempo – que é o que costumo chamar de “ideias diferentes” — e razão pela qual os produtos indies são cada vez mais valorizados. Eis a circunstância: você conclui a campanha do primeiro, inicia o segundo e, quando o jogo finalmente solta a sua mão, emerge-se um anseio por exploração; mas você já passou por isso antes e, como num choque de realidade, assume que é melhor moderar suas expectativas; por fim, escolhe o planeta, completa o pouso e já se prepara para lidar com um ambiente vazio e inóspito.
Sucede que, agora, para a própria surpresa, você passa a enfrentar uma série de missões em locais fechados, ao molde das quests principais, a fim de obter equipamentos, armas e componentes de upgrade. Não apenas isso: em cada um desses lugares você é apresentado a pequenas histórias, trechos de diálogos e arquivos em texto, completando-se num emaranhado de missões que, juntas, explicarão uma trama paralela inteira iniciada e finalizada em extremos opostos da galáxia. Em um dos raros eventos onde o meme "Expectativa X Realidade" deve ser escrito na ordem inversa, você naturalmente será compelido a explorar – e se sentirá satisfeiro fazendo isso. "Boquiaberto" talvez seja a expressão adequada. O mundo aberto, por outro lado, foi verticalizado e o novo veículo não é nem um carro e muito menos uma aeronave. Muito embora tenham mantido a exploração para obtenção de recursos em alguns casos, restou claro que não foi uma prioridade da BioWare tratar disso, até porque, diferente do primeiro, só podemos sair do veículo em momentos muito específicos. Você ainda terá o benefício de vagar e contemplar alguns locais excepcionalmente muito bonitos e até excêntricos – e há quem goste disso, como eu mesmo – sem prejuízo da experiência geral.
Consequência direta disso é a capacidade de upgrade. Ou melhor: o novo sistema de upgrade. O principal deles, que diz respeito especificamente às melhorias feitas sob medida para o Shepard – que podem beneficiar, em alguma medida, seus companheiros de equipe –, foi dividido, na prática, em três partes: obtenção de recurso, obtenção do conhecimento do upgrade a ser feito e, por último, juntando os elementos prévios, a fabricação da melhoria. Parece trabalhoso, mas na verdade é um sistema muito mais gratificante e até mesmo mais natural em comparação ao funcionamento do primeiro. Para melhor compreensão: nesta continuação, temos uma espécie de minigame de scan que permite a coleta de 4 tipos de recurso. Esta etapa designa-se à obtenção de recurso. Já dentro das missões ou em locais abertos para a exploração, como Omega ou Illium, sejam elas parte da história principal ou secundária, deparamo-nos frequentemente com itens espalhados pelo chão, escondidos atrás de caixas, alguns outros adquiridos diretamente com comerciantes ou trancados em cofres de segurança, desbloqueáveis apenas com a resolução de puzzles que, regra geral, são simples – mas que também são perdíveis. Nesta etapa, você atende ao “requisito” de obtenção/aquisição do conhecimento do upgrade. Por último, a etapa de fabricação da melhoria: embora seja, em tese, a parte mais fácil de toda a correria, ainda será necessário uma última ferramenta: um dos 12 personagens integrantes do squad. Sem ele, pelo meu conhecimento, encerramos a campanha com equipamentos do nível de early game. E é basicamente isso. Também foi adicionado o upgrade da nave, mas ele é bem mais simples. Provo isso explicando nessa mesma linha (a menos que você esteja lendo pelo celular): tudo o que é preciso são os recursos obtidos no minigame de scan e fazer os diálogos com os 12 companions. Ponto. Dito isso, não se deve subestimar a melhoria da Normandy.
Antes de começar o jogo, fui advertido – ou melhor: incentivado – acerca de uma mudança formidável na gameplay. Mais: garantiram, por exemplo, que veria um salto como ocorreu de The Witcher 2 para The Witcher 3. Não é bem verdade. Para ser sincero, achei, de início, que a gameplay estava mais pesada em comparação com o primeiro. Não obstante haja algumas novas mecânicas, como o salto por obstáculos/covers e a substituição de heatsinks (que limitavam a quantidade de tiros em função do sobreaquecimento) por cartuchos com munição, introduzindo carregamento da arma, e até mesmo a adição de novas animações do protagonista, não sou capaz de apontar este aspecto do jogo como uma melhoria real. Dou o benefício da dúvida aos que foram enfáticos nesse sentido, seja por terem jogado há muito tempo, pelo apego à franquia ou pela sobrevalorização de melhoras tímidas, mas também é fato que a BioWare não foi capaz de acertar na gameplay (mais precisamente, na sua fluidez) e pensando nisso, de boa vontade, ofereço outra explicação, que tem por base algo que já havia abordado: a construção dos ambientes de combate. Disse anteriormente que, para mim, tudo o que envolve os momentos de combate nesta sequência são game changer justamente considerando terem sido os cenários muito melhor idealizados do que os mapas/salas de combate em ME1. Sabe o conceito de smart houses ou smart cities? Pois então, é quase isso, mas o nome seria “smart fields”. A abordagem deles, nesse sentido, pode ser entendida como revolucionária (dadas as devidas proporações, evidentemente) e não surpreendentemente confundida com as melhorias de gameplay – que, sim, existem, mas são muito sutis. O que mais me agradou aqui, acredite ou não, foi a inserção de mais atalhos para o uso de habilidades – o que é bastante RPG. Agora você pode usar os botões R1 ou L1 (ou RB e LB) para comandos adicionais do Shepard, assim como o triângulo ou “Y” para o uso de adrenalina, e mapear os d-pads direito e esquerdo para as habilidades do squad. É ergonômico, foi uma saída inteligente e é uma pena que não tenham implementado isso no primeiro.
Outro grande destaque é a trilha sonora, assim como seus temas principais. Todas são muito objetivas e situam prontamente o jogador. Cada local tem seu próprio tema, como de praxe, e as trilhas cumprem formidavelmente seus respectivos propósitos: nos momentos de combate, evocam premência; nas boss fights, intensidade e terror; na exploração de locais amigáveis, temas relaxantes, convidativos e até mesmo intimistas; na exploração de locais desagradáveis, urgência e a quase tangível sensação de sussurro que diz “aqui você não é bem-vindo”. Um primor. Tão impactante quanto essas, para mim, o tema do mapa da galáxia é imbatível – afinal, por justaposição, ele é o tema da galáxia. O momento onde ele é executado, que é basicamente toda vez que resolvemos viajar de um ponto para o outro, implica, do meu ponto de vista, um enorme lapso de introspecção. Sigo crendo que ele só foi capaz de me marcar como marcou pois era a minha única companhia na ocasião onde me deparei, pela primeira vez, com toda a vastidão do universo lá em Mass Effect 1, há mais de dois meses.
Ainda hoje, não consigo puxar o mapa da galáxia sem ouví-lo por pelo menos alguns minutos enquanto encaro tudo aquilo que, por mais que queira, nunca serei capaz de explorar – seja no jogo ou na realidade. De todo modo, senti falta dos temas clássicos de ME1. Em Citadel, especificamente. Vez ou outra, coloco para tocar no trabalho a trilha sonora completa da trilogia já na expectativa de ouvir às faixas de Presidium e Wards. Não é por menos: boa parte da exploração do primeiro também ocorria nesses ambientes e, portanto, é natural que deles todos restem boas memórias e o gosto saudosista de novidade — por mais paradoxal que pareça, e sabemos que o universo é um lugar repleto de paradoxos — que só os mais dispostos a embarcar em novas aventuras podem experimentar. Como deve ter ficado claro, o trabalho com as músicas e temas do jogo é, no meu entendimento, irretocável e uma verdadeira aula para a indústria artística — que calha de ser também a de entretenimento. Seja o primeiro, segundo e até mesmo o terceiro (que comecei há poucos dias e, vale dizer, retorna com as músicas clássicas, mas num contexto diferente), esteja certo de que somos todos bem servidos no departamento de OSTs.
Ante à grandiosidade de todo o trabalho até aqui, começamos, por fim, a tocar na história. Normalmente, os cenários de qualquer trama com algum nível de conflito (da literatura ao cinema; dos beltings musicais às peças de teatro e etc.) costumam ser baseados num maniqueísmo bobo, e isso não vem sem a falta de inspiração, uma vez que recorrem frequentemente aos clichês; “plot twists” que não podem, de modo algum, dada sua previsibilidade, serem chamados desta forma, mas que insistentemente são assim tratados; construídos, portanto, de modo a atenderem baixíssimos níveis de demanda criativa – o suficiente para que o espectador, ouvinte ou jogador consiga, em muitos casos, relevar a “toletada” blasé arrotada –, numa epidemia pastiche em escala industrial. Mass Effect 2 não é assim.
Não é sequer possível que passe desapercebido: o jogo lida formidavelmente com tópicos simples e complexos com muita facilidade, transitando entre todos eles de forma natural, situando o espectador em cada pequena missão e diálogo, gerenciando tudo isso com a propriedade de alguém que fala dos detalhes da palma da própria mão. Para além do ritmo, há uma intensidade feroz que não lhe permite desgrudar os olhos da tela, contemplando a tudo aquilo sempre com grande espanto e surpresa, fazendo-o se perguntar recorrentemente “mas como diabos os caras pensaram nisso?”. A história é brilhante, escrita de forma primorosa e tão genialmente complexa que o pano de fundo para ela é uma rede que conecta elementos sutilmente distintos – embora inexoráveis – e uma sucessão de eventos que datam pelo menos 50.000 anos contabilizados na forma do tempo de vida humana. Em verdade, a proporção destas ocorrências assustadoramente complexas e o andamento da própria história desta continuação não permitem que qualquer pretensa análise seja feita sem que antes tratemos brevemente da obra que a tudo deu origem: o grande prólogo que é o primeiro Mass Effect.
Há uma preocupação pertinente do primeiro título no sentido de familiarizar os jogadores, sobretudo os que tenham acabado de iniciar a saga, acerca dos eventos pregressos do universo de Mass Effect. Livros, por exemplo, fazem muito isso, e é incomum ver jogos que também demonstrem tamanho cuidado. Aqui, protagonista e demais personagens humanos mantém relação com outras espécies sapientes espalhadas pela galáxia há um tempo considerável – mais precisamente, desde a Guerra do Primeiro Contato; organizam-se politica e hierarquicamente numa cadeia de comando altamente rigorosa; mais: são responsáveis por atribuições específicas, considerando suas respectivas vocações ou predisposições (como os turianos, uma espécie militar por natureza, ou salarianos, cientistas natos). Há um arranjo dado e, com base nesta composição, todas as espécies se alinham com o único propósito de gerir e prover manutenção em favor de toda a Via Láctea.
Não jogamos nada disso, tampouco somos apresentados a estes eventos via cinemáticas ou ocasionais flashbacks, mas temos deles ciência em função dos arquivos de texto, disponibilizados gradualmente e somente em ocasiões específicas, estabelecendo links entre o passado e o presente da história, enriquecendo não apenas a nossa compreensão sobre o estado das coisas, mas também a si mesma. Deste modo, não é errado dizer que a história de Mass Effect não comece, de fato, dentro da Normandy no primeiro jogo, fazendo os diálogos com o capitão Anderson, Joker, Nihlus e demais tripulantes, mas, sim, quando decidimos abrir o Codex pela primeira vez. Estes registros finalmente culminam no próprio jogo, e então, ao longo da campanha, presenciamos algumas reviravoltas, lidamos com certos conflitos, ficamos a par de numerosos mistérios, a história finalmente escala – e escala muito – e no apex, o clímax do jogo, a tela se escurece e os créditos sobem. Com o player devidamente introduzido, agora é possível lidar com Mass Effect 2.
“O que está acontecendo?”, “Ora, eu importei meu save. Onde está meu squad?” e “Cerberus?” podem ser as perguntas iniciais, como foi o meu caso, mas não capturam e sequer são capazes de antecipar a iminente grandiosidade que, cedo ou tarde, se revelará por trás do véu de todas as nebulosas. Dividido em 3 atos mais a sequência final, a história de ME2 é recheada de “altos e altos” entre momentos ora intensos, ora muito, muito intensos e, nas situações de calmaria, eletrizantes. Muito embora carregue um tom de desenvolvimento em relação ao título de abertura da franquia, preocupando-se muito mais em trabalhar o plot principal sem se esquecer das histórias paralelas dos personagens conhecidos no processo, diminuindo, inclusive, o número de arquivos inéditos de texto entregues, há uma permanente sensação de corrida contra o tempo. Colocando-me no lugar de cada um deles, sinto a angústia e a impotência de remediar a situação; atrasados, nunca estamos nos lugares onde deveríamos estar no momento em que deveríamos estar; que todo movimento é mera platitude e que qualquer tentativa de lutar contra o absoluto desastre não é muito mais do que perda de tempo. Nós sabemos que estamos lidando com o descohecido, e isso nos incomoda; tudo parece incerto e nada opera ao nosso favor. Se há um fio de esperança, nele nos agarramos e, como se nada mais importasse, depositamos todo resquício de fé. "Será preciso muito mais do que isso", nos ocorre – e sabemos que é a verdade. Num lapso, nos rendemos ao mecanismo de defesa mais primitivo e assumimos um estado de absoluta negação. Afinal, ou isso, ou sucumbiremos silenciosa e religiosamente à catástrofe.
O cenário de desesperança se revela; frio, escuridão e terror sobre nós recarraem e o que resta, por fim, é o abate moral encarnado em cada um dos tripulantes normandistas num sublime estado de pura anomia. Dirigimo-nos ao ato final conscientes de que compramos um bilhete apenas de ida, cujo destino é o fim da própria vida e que ser algum, consciente ou não de si, deveria ter de lidar com tamanho fardo, sobretudo um que nos responsabilize acerca de tudo aquilo que conhecemos e entedendemos por vida – mas, afinal, alguém precisa fazer algo e manter a fagulha de esperança acesa, certo? Nos trechos finais, seguimos conquistando espaço, abatendo ondas cada vez maiores de inimigos, sendo apresentados a escolhas cada vez mais difíceis, incertas e até mesmo injustas, sacrificando-nos e nos colocando à disposição da boa vontade do que quer que tenha o destino nos reservado. Alguma sucinta esperança se enleva e, em seguida, diante de nós se revela o boss final. Tudo o que pensávamos que sabíamos se esmorece e a sensação de pavor se conflagra, subjugando nossa racionalidade. Numa situação onde até mesmo a tarefa de processar uma informação parece demais, não há tempo hábil restando em ME2 para lidar com um evento de tamanha proporção. A luta contra o boss move o squad inteiro, espremendo puro instinto e sobrevivência animal dos tripulantes – desesperados por mais um ou dois dias de vida, que seja –, mas sabemos que o resultado aqui, no fim, é indiferente. Já não se trata do boss, mas pelo fato de estarmos lidando com algo que nos escapa completamente à compreensão. Antes que as luzes do show se apaguem, um último frame: A Odisseia Reaper.