"Deus, a perfeição absoluta, criador da humanidade, do céu e da terra, do bem e do mal, de todas as coisas que nossa “vã sabedoria” ainda ignora e de todas as desgraças – mas ainda assim, ele é tão poderoso que consegue ser perfeitamente bondoso ao fazer o mal. Enfim, um ser fabuloso, gabado de ser onipresente, onisciente e onipotente que, entretanto, não parece conhecer outra morada além das lacunas de nosso conhecimento. Fernando Pessoa disse “Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo. E entraria pela minha porta dentro dizendo-me, aqui estou!”. Realmente, parece que Deus não existe – mas talvez isso seja ceticismo demais. Quem sabe ele não é apenas um pouco tímido." (...)
"Em qualquer corte justa, Deus teria de responder por: 1) – Omissão de socorro: deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal... (cf. Art. 135, Código Penal) e por 2) – Homicídio qualificado: à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido (cf. Artigo 121, § 2°, inciso IV, Código Penal). Ou seja, se Deus fosse um homem, ele já estaria apodrecendo numa penitenciária de segurança máxima onde ficam enclausurados os criminosos mais hediondos. Se a pena pelos seus crimes fosse provar um pouco do veneno que ele próprio criou, certamente preferiria nunca ter existido – e desaparecia num estalar dos dedos!" (...)
"Se cada pessoa tivesse honestidade suficiente para admitir a insignificância e o ridículo que representa, não acreditaria que sequer merece uma vida eterna. Mas contra esta lucidez ante a insignificância que causa tanto mal-estar à maioria das pessoas é possível forjar uma pequena fórmula bastante prática:
1) Acreditar, sem ter motivos, em tudo que conforta;
2) – Ser totalmente parcial e só ver aquilo que convém;
3) – Imaginar que aquilo que está faltando para ser feliz chegará em boa hora;
4) – Acima de tudo, fechar os olhos para todo o resto.
Mas, para a satisfação dos descrentes, também há uma fórmula ateísta para evitar discussões inúteis com quem decidiu utilizar a fórmula apresentada acima:
1) – Nunca discuta com pessoas que creem firmemente em algo sem precisar de motivos ou provas;
2) – Se acontecer uma inevitável discussão, não se preocupe, apenas ria bastante das explicações espúrias que darão para justificar suas crenças." (...)
"Até onde sabemos, a essência de todas as coisas é a sua própria existência. O ser, em si mesmo, não carrega qualquer razão, valor ou significado incrustado em seu âmago – portanto, tampouco nossas vidas. Fora dela própria, a vida não pode ser reconhecida como algo importante ou tampouco necessário. Estarmos aqui é fato puramente contingente, de modo que, se não estivermos olhando pela perspectiva humana – ou seja, despejando nossos juízos na realidade –, nada pode diferenciar uma pedra rolando montanha abaixo ou uma vida nascendo. Para o universo impessoal, externo a nós, à nossa realidade subjetiva, a vida não se distingue de um amontoado de átomos sem significado. Estarmos aqui, vivos e pensando, é algo totalmente vazio de qualquer significância objetiva. À parte isso, podemos fazer o que quisermos, decorar a existência com a roupagem que preferirmos. Podemos dizer que a vida é tudo; podemos dizer que a vida é nada; que é uma bênção com espinhos ou sem espinhos, que é uma maldição completa ou incompleta; podemos inventar regras para definir e julgar os seres; podemos importunar todos com teorias sobre como devemos nos comportar e no que devemos acreditar etc.; podemos gritar nossas opiniões ou permanecer calados. Nada disso despertará o interesse dos átomos; o mundo não procura nos imitar. Como humanos, o nonsense essencial consiste em acreditarmos naquilo que inventamos e fazer de conta que a realidade estava de férias quando decretamos a verdade absoluta."
"Alguns dizem que a filosofia nasce de nossa capacidade de nos espantarmos com o mundo, com aquilo que, para a maioria das pessoas, é trivial. Pelo menos aos meus olhos, parece ser realmente absurdo o fato de existirmos, e não consigo pensar em qualquer coisa como sendo trivial. Sequer consigo achar óbvio o fato de que o mundo existe. Já cansei de fazer a mim mesmo a famosíssima pergunta: “Por que há seres em vez do nada?”, e nunca consigo pensar em qualquer resposta coerente. Simplesmente abrimos os olhos, aparecemos neste mundo enquanto seres vivos conscientes, sem qualquer manual de instruções. É realmente muito estranho que todas as pessoas vivam suas vidas com a consciência de que ninguém sabe por que elas todas existem. Muitas fogem deste tipo de vazio através de crenças dogmáticas, o que talvez não seja algo ruim, pois ninguém tem a obrigação de ser racional e coerente quanto a suas opiniões acerca da realidade. Mas, quanto a mim, prefiro a razão. Através dela, vejo um mundo que não entendemos, tendo uma única certeza relativa: a de que vamos todos desaparecer. De fato, nós não existimos: apenas estamos acontecendo." (...)
"Todas as ocupações às quais nos dedicamos são apenas um passatempo para suportarmos a vida. Sempre precisamos cultivar um entusiasmo cavalar e ilusões de todos os tipos para conseguirmos a motivação necessária para manter nossa vida em seu rumo – em outras palavras, para mantermo-nos alheios ao angustiante vazio da realidade. No fim, é certo que as expectativas lançadas sempre estão muito acima do resultado real. O fato é que precisamos ultravalorizar a nós mesmos e todos os nossos objetivos por uma simples questão de autopreservação. A motivação humana sustenta-se neste tipo de autoengano. Talvez isso não seja tão ruim, só é estranho." [André Cancian]